Vivi durante um ano como um fantasma

Agora que o susto passou, tenho cada vez mais a certeza de que é verdade que nascemos sozinhos e assim morremos. Foi algo assim que tatuei no corpo quando o médico me disse: não é cancro. E pelo meio, entre o nascer e o morrer, sem saber quanto tempo será isso, somos de nós, somos as nossas escolhas e acompanhamos-nos de quem escolhemos para amar. E que nos amem, já agora.

Vivi durante um ano como um fantasma

Levantei-me todos os dias e fui trabalhar normalmente e em alguns deles vim para casa mais cedo nos “braços” de amigos que me conduziram o carro depois de desmaiar. Ou de vomitar. Ou de desmaiar e vomitar no emprego.

O médico mandava-me meter baixa mas o silencio ensurdecedor que ia ter em casa causava-me tanto pânico que não me pus à prova. Era mais fácil ir trabalhar e saber que se acontecesse alguma coisa estava lá alguém para me acudir. Vivi um ano como um fantasma pálido. Perdi 8 quilos, eu que já era magra.

Levantei-me todos os dias e fui trabalhar enquanto chorava de horror e nojo de ver o meu corpo a definhar. Médicos e mais médicos. Perdi o gosto por quase tudo. Deixei a certa altura de gostar de mim mesma. Levantei-me todos os dias para ir trabalhar sabendo que o dia ia acabar comigo deitada no chão do chuveiro a chorar.

“Vamos fazer o despiste de cancro na hipófise”, dizia um médico. “Você deve ter é uma menopausa precoce, tem 33 anos e sem filhos…olhe se calhar não vai ter”, disse-me uma médica sem pestanejar enquanto me reencaminhava também para uma psicóloga que me tentou entupir de comprimidos após uma conversa breve em que julgo que em nada lhe revelei estar “deprimida”. Nunca os tomei.

Nesse ano custou-me a solidão apesar de muitas vezes estar rodeada de pessoas que sei que se preocupam comigo, que gostam de mim. Mas em mais de 365 noites, muitas delas foram de uma solidão devastadora. Vivi um ano como um fantasma que já nem se via reflectido no espelho. Acordei várias vezes com galos na cabeça esticada no corredor de casa. Sozinha.

É assim que vivem os fantasmas, perdidos e sozinhos. Num momento negro, em que senti uma revolta absurda com tudo o que me estava a acontecer, fiz algo que nunca acreditaria fazer se me dissessem que seria pessoa para uma coisa daquelas: em raiva agarrei com as duas mãos os meus cabelos e puxei-os. Arranquei bastantes. Não me doeu. A raiva cobriu a dor. Fiquei morta de vergonha. Fiquei assustada. Esta não sou eu. Esta nunca fui eu.

“O mundo começou todos os dias para os outros à minha volta enquanto o meu acabava todas as noites com a certeza que acabaria novamente na noite seguinte”

Percebi no último ano que não conhecemos os nossos limites. Não sabemos onde está a linha que achávamos que nunca íamos ultrapassar. Percebi que não sabemos que rastilho nos pode fazer explodir. Acho que o meu foi o sentir indiferença pelos fantasmas. O mundo não para. A vida de toda a gente continua enquanto o fantasma vai vivendo um dia a dia de repetição.

Levantei-me todos os dias para ir trabalhar sabendo que o dia ia acabar comigo esticada no corredor de casa ou a chorar no chão do chuveiro. Amarela, magra, com os olhos encovados, miserável, doente. O mundo começou todos os dias para os outros à minha volta enquanto o meu acabava todas as noites com a certeza que acabaria novamente na noite seguinte.

Agora que o susto passou, tenho cada vez mais a certeza de que é verdade que nascemos sozinhos e assim morremos. Foi algo assim que tatuei no corpo quando o médico me disse: “não é cancro”. E pelo meio, entre o nascer e o morrer, sem saber quanto tempo será isso, somos de nós, somos as nossas escolhas e acompanhamos-nos de quem escolhemos para amar. E que nos amem, já agora.

Eunice Gaspar jornalista da Nova Gente
Eunice Gaspar | jornalista da Nova Gente

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