Do clima aos tubos de escape, como melhorar a qualidade do ar das nossas cidades
A qualidade do ar na Península Ibérica é, nas grades cidades como Lisboa ou Madrid, um grave problema de saúde pública. A poeira vinda de África agravou a situação, mas o tráfego rodoviário é o verdadeiro problema.
“Quando falamos de poluição do ar (a poluição transportada pelo ar), devemos diferenciar entre aquela com efeitos climáticos e aquela que afeta diretamente a saúde quando a respiramos (a qualidade do ar)”, começa por diferenciar Xavier Querol Carceller, professor de investigação do Instituto de Diagnóstico Ambiental e Estudos da Água (IDAEA – CSIC), em Espanha, afetada ao longo de vários dias, tal como Portugal, pelas poeiras vindas do norte de África. Os poluentes climáticos são o dióxido de carbono (CO₂), metano (CH₄) e alguns outros gases e partículas que “interferem no equilíbrio do calor recebido e emitido pela Terra” e que, consequentemente, “influenciam o nosso clima“.
A legislação europeia regula a concentração de 15 poluentes na qualidade do ar, mas, na Península Ibérica, “focamo-nos sobretudo em quatro, que consideramos críticos” e cujos níveis no ar, em todos os casos, “ultrapassam os valores normativos da legislação ou seus respetivos valores constantes no guia da Organização Mundial da Saúde:
1. Partículas suspensas, PM10 ou PM2,5 dependendo se são menores do que 10 ou 2,5 mícrons (menor do que a espessura de um cabelo humano, cujo diâmetro varia dos 80 a 100 mícrons);
2. Dióxido de azoto (NO2);
3. Benzo[a]pireno (BaP, principalmente como uma partícula);
4. e Ozono troposférico (O₃).
Deficiente qualidade do ar responsável por 7 milhões de mortes prematuras
A OMS atribuiu nada menos do que 7 milhões de mortes prematuras em 2018 globalmente à má qualidade do ar. Um ano depois, a Agência Europeia do Ambiente estimou que mais de 300 mil pessoas na UE morreram pela mesma causa. Estudos epidemiológicos mostram que a maior incidência está nos óbitos por causas cardiovasculares, seguidas das causas respiratórias.
“O preocupante é que este aumento da mortalidade é apenas a ponta do icebergue. Com a má qualidade do ar, a mortalidade e os custos associados também aumentam”, explica Carceller. As últimas estimativas do Banco Mundial mostram, de facto, que os custos associados à má qualidade do ar representam 4,5% do PIB global. “É claro que a melhoria da qualidade do ar representa um problema de saúde pública e não apenas de ambientalismo.”
O episódio calima (a poeira transportada desde África que aumenta os níveis de PM10 e PM2,5 na nossa península) nesta semana “bateu os recordes de PM10 alcançados em certas áreas de Portugal e Espanha”. “Os níveis médios diários de PM10 e PM2,5 em 15 de março no sudeste e no centro da Península superaram os níveis recomendados pela OMS em 7 a 15 vezes”, regista. Além dos dados, mais grave é que “o seu potencial efeito na saúde é reconhecido pelas recentes Diretrizes de Qualidade do Ar da OMS publicadas em setembro de 2021“. Como os profissionais de saúde pública têm recomendado nos dias de hoje, “é necessário tomar medidas para reduzir a exposição da população mais sensível“, reforça Carceller.
A boa notícia “é que esta poluição aguda não durou muito”. Ultrapassado este episódio com origem em África, que afetou Portugal e Espanha, “os níveis de PM10 e PM2.5 em áreas urbanas passaram a ser reduzidos”. O lado mau, contudo, é que, “mesmo que caiam, continuarão a manter médias superiores aos que a OMS recomenda”. “Além disso, os níveis de NO₂, O₃ e BaP também atingem valores médios anuais superiores a aos recomendados.”
Poeira de África é má mas o tráfego rodoviário é pior
De acordo com os dados gerados pelos projetos AIR-USE LIFE, RI-URBANS e CAIAC (Agência Estadual de Pesquisa, PID2019-108990RB-I00), “35% das PM10 e das PM2,5 nas áreas urbanas, na ausência dos efeitos africanos, “provêm das emissões do tráfego rodoviário“. Destes, um terço vem do desgaste dos travões, dos pneus e do pavimento”. Dependendo da área, “10 a 40% é de origem industrial”, “10 a 15% de obras de construção ou demolição” e “5 a 10% de transporte marítimo” (naturalmente, nas cidades com portos, como são os casos, por exemplo, de Porto e Lisboa).
No caso do NO₂, “70% do que os cidadãos” das maiores cidades da Península Ibérica respiram “vem do tráfego rodoviário”, com “contribuições muito menores da indústria, da produção de eletricidade, do aquecimento e das emissões do transporte marítimo”. “O problema do BaP”, constata Xavier Querol Carceller, ocorre em “cidades pequenas, onde são utilizados combustíveis sólidos (carvão e/ou biomassa)”, para aquecimento. Por fim, “o O₃ troposférico é o poluente mais complexo, pois é gerado na atmosfera (com a intervenção da radiação solar) a partir de outros gases precursores (entre eles o NO₂)”.
Atualmente “é mais complexo reduzir os níveis de poluentes do que em 2005”, há quase duas décadas. As medidas tecnológicas em veículos, na indústria, na produção de eletricidade e de aquecimento, entre outras, “estão esgotadas”. Por isso, “estas medidas devem evoluir, sim”. Mas, certifica Carceller, “dada a grande contribuição do tráfego rodoviário, serão de pouca utilidade se não forem acompanhadas de uma redução do número de veículos circulantes urbanos”.
Nas cidades, qualidade do ar é qualidade de vida
Será essencial “transformar as cidades noutras com melhor qualidade de vida (e, portanto, mais saudáveis)”. “Podemos escolher entre ter a mesma cidade supersaturada de veículos elétricos ou transformá-la noutra, com menos veículos, mais espaço verde, menos ruído e mais atrativa para o transporte ativo” (a pé e de bicicleta), propõe o especialista ambiental. O projeto AIR-USE LIFE identifica as medidas mais eficazes aplicadas nas cidades mais avançadas neste campo:
“1. Transporte público metropolitano e urbano bem desenvolvido, rápido, económico e confortável;
2. Redução do número de veículos urbanos a circular com a promoção de vias pedestres urbanas e restrição de estacionamento ao ar livre, permitido apenas moradores;
3. Zonas de baixas emissões que não permitam a circulação de veículos antigos, mais poluentes, e favorecimento dos mais ecoeficientes;
4. Logística eficiente para distribuição urbana de mercadorias e táxis (com redução do número de viagens com implementação de logística inteligente, entregas noturnas, hibridização e eletrificação de veículos);
5. e redesenho urbano que permita ganhar espaço para o veículo em favor de áreas verdes e de pedestres, e que afaste o tráfego de hospitais, escolas, centros de atenção primária, asilos, espaços infantis”, etc..
“Muitas cidades europeias já escolheram a segunda opção [com menos veículos e mais espaço verde] e os resultados são excelentes”, assinala. Em Espanha e em Portugal, “estamos atrasados, como estivemos com o cinto de segurança obrigatório, a proibição de fumar em espaços públicos ou a proibição de beber enquanto conduzimos”, enumera Xavier Querol Carceller.
As vantagens de atuar em todos estes exemplos “são muito evidentes”. No caso da qualidade do ar, “é necessária uma mudança de modal no transporte metropolitano, com a transferência dos veículos particulares para o transporte público”. Para isso, “as administrações têm de esforçar-se para oferecer uma boa opção de transporte público”. Simultaneamente, “nós, cidadãos, temos de aceitar que o nosso comportamento nesta área tem de ser modificado para ajudar a resolver este problema de saúde pública”.
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