A falsa invasão extraterrestre que deixou o mundo aterrorizado

No 1 de Abril, Dia das Mentiras, recorde a maior de todas elas. Há pouco mais de 80 anos, Orson Welles transmitiu uma peça de teatro radiofónico que viria a ser a primeira de todas as fake news: A Guerra dos Mundos, sobre uma falsa invasão extraterrestre.

A falsa invasão extraterrestre que deixou o mundo aterrorizado

Em 30 de outubro de 1938, três anos antes de lançar Citizen Kane, Orson Welles provocou o pânico generalizado com a falsa invasão extraterrestre a que deu o título de A Guerra dos Mundos. Na rádio Columbia Broadcasting System (a CBS), interrompeu a programação musical diária para relatar uma invasão de marcianos, cuja transmissão integral pode ser ouvida no final do artigo.

Tudo não passava, naturalmente, de uma dramatização, de uma peça de teatro radiofónico, forma de entretenimento muito comum antes da massificação da televisão, em que  eram transmitidas as radionovelas. Só que a ‘notícia’ surgia no tom da urgência noticiosa, o que transformou aquela clara ficção em realidade para larga maioria dos ouvintes e levou a CBS a bater a concorrente National Broadcasting Company (NBC).

Welles no alto à esquerda e Bernard Herrmann no alto à direita (Imagem de Domínio Público)
Welles no alto à esquerda e Bernard Herrmann no alto à direita (Imagem de Domínio Público)

A intervenção durou apenas uma hora, mas foi o suficiente para que boa parte dos que ouviam tomasse como verdadeiros os relatos da chegada de centenas e centenas de marcianos à cidade de Grover’s Mill, em Nova Jersey, nos Estados Unidos da América. Não demorou para que o terror se instalasse, numa época sem WhatsApp nem redes sociais.

Welles não podia ser isentado de culpa. O trabalho dele como produtor, guionista, realizador, narrador e personagem do programa da suposta invasão extraterrestre foi inteiramente realizado em formato jornalístico, na exata forma a que os ouvintes naquela época estavam habituados. Numa hora, aquele jovem de 23 anos transmitiu ao público um programa completo, com reportagens no exterior, gritos de pânico sonorizados sobre um fundo de ruídos da suposta invasão, opiniões de especialistas e comentários de autoridades. Tudo estava, obviamente, previamente escrito, incluindo os relatos emocionados dos repórteres.

De acordo com os historiadores Jefferson Pooley e Michael J. Socolow, porém, não apenas a história liderada por Welles era ficção como o próprio pânico que ela terá causado não passa de mito. Num artigo publicado em 2013, intitulado The Myth of the War of the Worlds Panic (O Mito do Pânico de a Guerra dos Mundos), Pooley e Socolow classificam as repercussões do acontecimento como “lenda” e tocam em pontos que podem justificar a persistência desta falsa memória.

Como tudo começou

O episódio, da antológica série The Mercury Theatre on the Air (Teatro Mercúrio no Ar), foi transmitido como parte do Halloween da estação de rádio e tinha banda sonora regida por Bernard Herrmann, parceiro do mestre do suspense Alfred Hitchcock. E nem sequer se tratava de uma obra original, era simplesmente a adaptação de A Guerra dos Mundos, obra literária escrita por H. G. Wells e publicada por inteiro pela primeira vez em 1898.

O romance de ficção científica de Wells, que, em 1897, já tinha sido publicado em capítulos separados pela Pearson’s Magazine, descreve, exatamente, a história da invasão da Terra por marcianos inteligentes, possuidores de máquinas assassinas (Tripods) e utilizando raios carbonizadores. Os extraterrestres do livro de Wells são a base da história de autênticos conquistadores e foi por várias vezes adaptada para Cinema – a última em 2005, pela mão de Steven Spielberg com Tom Cruise no papel de protagonista.

Na história original, os marcianos, depois de épica campanha de extermínio dos humanos, acabam por sucumbir a uma bactéria. Sem imunidade para conter a infecção, a espécie extraterrestre começa a morrer gradualmente. Toda aquela existência aparentemente tão evoluída que podia facilmente cruzar o Espaço e dizimar outras espécies acaba derrotada por seres invisíveis a olho-nu.

Impacto no século XX

Na altura, a CBS fez uma estimativa de que a transmissão de Welles foi ouvida por cerca de seis milhões de pessoas. O problema, contudo, é que mais de metade dos ouvintes só sintonizaram a rádio depois da introdução, que alertava para o facto de tratar-se de mais um episódio do teatro radiofónico semanal da estação. A sobrecarga nas linhas telefónicas e a aglomeração nas ruas do Estado de Nova Jersey levaram à estimativa de que pelo menos meio milhão de pessoas tiveram a certeza de estarem perante um perigo real.

Para Pooley e Socolow, tudo não passou, na verdade, de falsa histeria, criada pelos jornais. Motivados pelo desvio de investimento publicitário para a rádio durante a Grande Depressão, os editores, por exemplo, do New York Times (NYT), não pouparam nas doses de sensacionalismo para provar aos anunciantes que as administrações das rádios eram irresponsáveis.

NYT no dia seguinte à transmissão (ArquivoThe New York Times)
NYT no dia seguinte à transmissão (Arquivo The New York Times)

A partir do editorial Terror by Radio (Terror da Rádio), o NYT foi terminantemente contra a mistura da ficção com as notícias, apontando o problema ético de oferecer aos ouvintes histórias da mesma forma com que lhes oferecia notícias verdadeiras. “A nação como um todo continua a enfrentar o perigo de notícias incompletas e mal compreendidas num meio [a rádio] que ainda tem de provar que é competente para realizar o trabalho jornalístico”, pode ler-se numa das passagens daquele editorial.

A verdade, no meio de tamanha confusão, é que notícias jornalísticas e informações importantes têm sempre de ser confirmadas. Numa época em que essa confirmação era, sem dúvida, muito mais difícil de realizar do que no século XXI, culpar os ouvintes de uma rádio pode ser no mínimo pretensioso. Sob outra perspectiva, apontar a culpa à rádio, por uma transmissão que alertava previamente sobre a teatralidade da exposição, também não será adequado.

A versão radiofónica de A Guerra dos Mundos foi uma espécie de alerta ao seu próprio meio, à rádio em si, porque a evidência da sua influência ficou muito clara. Soube-se, ali, que a penetração do que era transmitido poderia causar reações reais nos ouvintes. Tão reais ao ponto de levar histeria coletiva. O programa, aliás, não levou apenas Welles a tornar-se conhecido em todo o Mundo e a realizar Citizen Kane três anos depois. Tornou-o igualmente reconhecido por ter sido o autor do momento que mais marcou a História da Comunicação Social no século XX.

Welles narra A Guerra dos Mundos (Imagem de Domínio Público)
Welles narra A Guerra dos Mundos (Imagem de Domínio Público)

Capturados pela nossa imaginação

O evento aparentemente inócuo viria contudo a originar transformações sócio-políticas. Gerou o programa de Defesa Civil dos Estados Unidos da América, foi utilizado num discurso por Hitler como exemplo da fraqueza de espírito norte-americana e acabou ainda por tornar-se objeto de estudo sobre histeria coletiva, o primeiro estudo académico sobre o tema.

Welles era de facto mediático. Foi sempre fértil a expor as interferências das mentiras sobre as verdades e como isso afeta a perceção do público. Lançou, pouco mais de 30 anos depois, o filme Verdades e Mentiras (em 1973), em que questiona constantemente as convenções estabelecidas através da dicotomia entre farsa e realidade.

Tanto tempo depois, pode ser difícil relatar de forma exata o que realmente aconteceu na fatídica noite daquele 30 de outubro de 1938. Sendo o terror em grande ou pequena escala, a questão pode recair sobre o poder da Comunicação Social e, em especial, sobre a responsabilidade que se tem para com o que deve ser Informação. Welles, aos 23 anos, tinha a intenção de aterrorizar o público, e nunca tranquilizá-lo. Aliás, naquele momento histórico, Davidson Taylor, supervisor da CBS, pedia incessantemente para que a transmissão fosse interrompida, mas Welles recusou-se sempre e manteve afincadamente o programa no ar.

Welles em conferência de imprensa após a transmissão (Imagem de Domínio Público)
Welles em conferência de imprensa após a transmissão (Imagem de Domínio Público)

Hoje, a caminho dos 83 anos desde aquele dia, é possível certificarmo-nos de cada informação que nos chega, independentemente do mensageiro. Existem ferramentas para evitar a construção do pânico e, por outro lado, há muito mais facilidade na disseminação exponencial de fake news – notícias falsas.

Naquele tempo, porém, 1938, a rádio era o único meio que poderia provocar reações imediatas e efusivas do público. O ouvinte ficava refém do seu próprio imaginário, ilustrando mentalmente os cenários enquanto narração e depoimentos descreviam os acontecimentos, ainda que com raízes literárias tão clinicamente adaptadas da obra original de H. G. Wells, escrita em tom jornalístico.

Invasão extraterrestre ou a primeira das fake news

Percursor das fake news – sendo esta falsa invasão extraterrestre a mais famosa – o programa da CBS apelava ao lado emocional de quem o escutava, ao ponto de conseguir tanta afetação. Afinal, é a base do neologismo da pós-verdade, como forma de modelar a opinião pública, apelando às emoções em detrimento de factos objetivos.

Na verdade, ignorando os factos, o jornalismo deixa de ter a função de informar, mas, antes, de comprovar o que foi dito – de forma cega e incessante. As informações perdem valor e tudo passa a ser um jogo de crenças, de Fé. O que leva a que conjuntos de valores se tornem necessários para a compatibilidade de uma notícia, circunstância que o psicólogo Leon Festinger relatou, em 1957, atestando que quanto mais próxima é a relação do ouvinte ou do leitor com uma informação falsa mais difícil passa a ser convencê-lo do contrário, da falsidade dessa informação.

Orson Welles e H. G. Wells (Imagem de Domínio Público)
Orson Welles e H. G. Wells (Imagem de Domínio Público)

A ideia da transmissão na rádio de A Guerra dos Mundos caminha para os 83 anos como se se mantivesse jovem, firme e forte, porque continua a ser replicada, dia após dia, nas redes sociais, agora sem o pânico daqueles tempos e por, eventualmente, estarmos já tão habituados a que as mentiras estejam a igualar o seu poder ao do das nossas verdades. Ou, ainda, porque estejamos carentes de notícias com que nos identifiquemos. Sendo este o caso, não somente passámos a aceitar pós-verdades e fake news como nos tornámos cúmplices de uma guerra que se aproveita do nosso emocional e constrói um mundo fictício – uma distopia – para, supostamente, nos fazer bem.

Artigo adaptado originalmente publicado no canaltech em 30 de outubro de 2020 e assinado por Sihan Felix, no 82.º aniversário da transmissão de A Guerra dos Mundos, com o título “Precursor das fake news: a influência de Guerra dos Mundos sobre as nossas vidas

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