Maria Cachucha existiu mesmo e matava e esfolava touros

Maria Cachucha existiu mesmo. Em 1942, os jornalistas que a conheceram descreveram-na como uma figura “forte como um touro, de bigode e cigarro nos lábios”.

Repousa na Biblioteca Municipal de Torres Vedras a reportagem de 1942 que revela a mulher que é a cara do adágio “no tempo da Maria Cachucha”. Maria Cachucha existiu mesmo, de acordo com os jornalistas que, na altura, a visitaram, como revela o Torres Vedras Antiga.

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Os repórteres queriam conhecer – como é descrita na pérola jornalística originalmente publicada na revista EVA – a figura “forte como um touro, bigode, cigarro nos lábios, lenço amarrado à cabeça e vestida de mulher”.

Nasceu em 1900 e recebeu o nome de batismo de Maria Purificação da Silva. Quando, 60 anos depois, morreu, ficou para a história conhecida por Maria Cachucha. Trabalhava no Matadouro Municipal e a forma como desempenhava a profissão “causava admiração”. Nessa época, era “a única mulher em Portugal que matava bois”. Consta que o fazia “com uma destreza impressionante”.

“Quando nos falaram da Maria Cachucha de Torres Vedras, não acreditávamos”, confessava a dupla de repórteres. “Seria possível que uma mulher fosse magarefe num matadouro em Portugal? Seria verdade que tivesse bigode como um homem, fizesse vida de rapaz nos cafés e que tudo isto se passasse em Torres Vedras, na província?”

«Maria Cachucha…? Somos jornalistas, gostaríamos de conversar consigo»

Maria Cachucha existiu, e matava e esfolava touros
A porta abriu-se e Maria Cachucha apareceu-lhes “forte como um touro, bigode, cigarro nos lábios, lenço amarrado à cabeça e vestida de mulher”

O facto de em Portugal o jornalismo ser pouco fértil em incidentes deste género aguçou-lhes a curiosidade. “Era necessário ir ver, necessário saber, se não havia nestas informações algo de exagero”, avaliaram. “Resolvemos partir para Torres Vedras e ver de perto o ‘fenómeno’. A nossa visita ia com certeza espantar Maria Cachucha, pouco habituada a que jornalistas fossem propositadamente de Lisboa para a ver.”

Chegados a Torres Vedras foram logo encaminhados. “Toda a gente a conhece.” Estava “no matadouro” ou talvez “em casa, a dormir”. “Deve estar a dormir. Ontem andou na pândega”, apostou, certeiro, um popular.

Seguiram para o matadouro. Maria Cachucha “não estava ainda”. Dormia, “com certeza”, disseram-lhes. Foram até casa dela. os jornalistas bateram.  Lá dentro, ouviram vozes. “A Maria Cachucha está?” Um voz “estranha” respondeu: – “Estou”. E depois: – “Vou já”.

A porta abriu-se e Maria Cachucha apareceu-lhes “forte como um touro, bigode, cigarro nos lábios, lenço amarrado à cabeça e vestida de mulher”. Cachucha estaria habituada àqueles espantos e sorriu-lhes com o seu sorriso “franco de bom camarada”, que os “ajudou a falar”.

– “Maria Cachucha…? Somos jornalistas. Gostaríamos de conversar um pouco consigo”… Respondeu-lhes “uma voz máscula, baixa, brutal mesmo”. – “Pois sim”… E a conversa começou.

«Foi buscar a vaca, amarrou-a e matou-a a fingir, só para a foto»

Maria Cachucha existiu, e matava e esfolava touros
Quando lhe pediram para fazer uma demonstração da matança, “acedeu de boa vontade”

– “Nós viemos para vê-la ‘matar'”… – “Então não tiveram sorte”. “Hoje não ‘mato’. Se tivessem vindo na sexta-feira… Era dia de matança… Hoje não.” Não querendo perder a viagem, os jornalistas insistiram. “Você não quer vir até ao matadouro mostrar-nos como trabalha?” – “‘Tá bem”… “Posso ir.”

E com o “à-vontade e as maneiras de um rapaz”, encaminhou-se para o carro de reportagem. Entrou e instalou-se. Seguimos para o matadouro e, lá, durante algum tempo, viram-na no seu elemento. “Esfolando, agarrando as ferramentas com as suas mãos fortes, serrando as rezes, de beata fumegante ao canto dos lábios.”

Quando lhe pediram para fazer uma demonstração da matança, “acedeu de boa vontade e foi ela mesma quem foi buscar a vaca, a amarrou e a ‘matou’ a fingir, só para a foto”. Feita a demonstração, Maria Cachucha seguiu com os repórteres para o centro de Torres Vedras, para a antiga taberna do Venceslau.

Sentaram-se todos e foi ela quem chamou o empregado. – “É já”, exclamou. Voltando-se depois para os jornalistas, perguntou-lhes o que queriam tomar. – “Dois cinzanos”. – “Dois cinzanos e para mim um café e um bagaço”.

“Maria Cachucha, há quanto tempo faz vida… livre… de rapaz?” – “Desde os 12 anos”. “Sempre fui assim. Gosto do convívio dos homens. Tenho bons amigos e temos feito boas pândegas! As mulheres são todas umas lambisgóias!”

«Gosto muito de Lisboa. Fazem-se lá boas pândegas, mas aquilo custa caro»

Maria Cachucha existiu mesmo e matava e esfolava touros
“Noutro dia, no Franco, foram cervejas e carapaus fritos até às seis da manhã! Fartámo-nos de gozar”

“O que fazia você antes de ‘matar’…? – “Andei muito tempo a tocar gado de noite e de dia entre Vila Franca e Malveira”. “Sempre lidei com bichos.” Maria Cachucha “tira uma caixa da algibeira e chama o empregado novamente”. – “Traz-me um maço de superior”.

Os jornalistas perguntam se é casada e se tem filhos. “Não. Sou viúva há mais de dez anos.” Tem um filho, “um matulão de 24 anos lá para Lisboa”. “Ainda lá estive na segunda-feira passada. Gosto muito de Lisboa. Fazem-se lá boas pândegas! Tenho lá muitos amigos, mas aquilo custa caro. Noutro dia, no Franco, foram cervejas e carapaus fritos até às seis da manhã! Fartámo-nos de gozar.”

Enquanto lhes diz tudo aquilo, “as mãos fortes” dela, “com anéis de homem”, vão enrolando um cigarro “com a agilidade de quem o faz todos os dias”. A conversa desenrola-se e é praticamente hora de almoço. Os jornalistas e Maria Cachucha estão agora “rodeados de camaradas”, aos risos, às gargalhadas, “com as histórias dela”.

“Você tem sempre trabalho aqui em Torres Vedras, no Matadouro?” – “Não”. “Trabalhei também em Leiria e também uma vez na Nazaré. Mas na Nazaré foi só para lhes mostrar que fazia aquilo tão bem como eles. Não me julgavam capaz. Foi um gozo”, diz. E ri.

“É o seu único modo de vida?” – “Não”. “Faço também ‘negociozitos’…” E “trabalhos de mulheres?” – querem saber os repórteres. – “Arranjo a minha casa”. “Faço a minha comida. Mas costura não. Não tenho mãos para isso.”

«Temos vontade de fugir, de ver uma mulher que não ‘mate’, que não esfole, que não viva como um homem. Enfim, uma mulher…»

Maria Cachucha existiu, e matava e esfolava touros
O aperto-de-mão de Maria Cachucha “é vigoroso” e deixa-os “a pensar que é melhor estar bem com ela do que mal”

A forma distinta de ser de Maria Cachucha é aceite onde vive e por quem a rodeia. Fora dali, longe dos dela, é diferente. E recorda um dissabor, “uma vez”, em Viseu. Julgaram “que eu era um homem vestido de mulher”. “Tomaram-me por um passador de moeda falsa que tinha ido a Viseu… Foi um caso sério! Mas fartei-me de rir depois. Os polícias ficaram parvos…!”

Maria Cachucha tem família em Torres Vedras, mas não fala com a irmã. Estou zangada com ela. Não nos falamos. Ela não compreende a minha vida. É mulher e basta”, ri. Ri ela e os amigos e riem os jornalistas, antes de se despedirem. “Temos de partir para Lisboa”, justificam.

O aperto-de-mão de Maria Cachucha “é vigoroso” e deixa-os “a pensar que é melhor estar bem com ela do que mal”. E partem com a sensação de algum “choque”, sem saberem “muito bem porquê”.

“Estivemos com uma mulher, mas com uma mulher estranha. Temos vontade de fugir, de ver uma mulher qualquer sem bigode, sem aquele palavreado masculino, sem aquela voz. Uma mulher que não seja magarefe, que não ‘mate’, que não esfole, que não viva como um homem. Enfim, uma mulher…”

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