APAV arrasa juiz que usou a Bíblia para desculpar agressão a mulher: “Decisão é perigosa”
A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) reagiu à decisão de um juiz que atenuou um crime de violência doméstica, com passagem da Bíblia e antigo Código Penal
A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) não entende a decisão de um juiz, em atenuar a pena a um homem que agrediu mulher. O magistrado do Porto baseou-se numa passagem da Bíblia e no antigo Código Penal, para desculpar as agressões. Segundo o mesmo, “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”.
A APAV reagiu esta segunda-feira, dia 23 de outubro, mostrando-se perplexa com a decisão judicial, que mantém o agressor com pena suspensa.
“A fundamentação subjacente a esta decisão judicial, para além de iníqua, é perigosa, na medida em que, ao manifestar compreensão perante atos violentos tão graves, legitima de algum modo comportamentos futuros de idêntica natureza. Constitui por isso esta decisão um fator de risco que não pode ser subestimado. Não se trata da mera opinião de um cidadão, manifestada num círculo de amigos ou nas redes sociais. Trata-se do exercício da função jurisdicional por um órgão de soberania do Estado, o que reveste esta situação de extrema gravidade”, lê-se no comunicado.
O facto de o juiz desembargador já ter julgado um caso semelhante, utilizando a Bíblia e o Código Penal, deixa a associação chocada.
“Acresce que o Senhor Juiz Desembargador Neto de Moura, Relator deste processo, é reincidente na utilização deste tipo de fundamentação, o que o torna manifestamente incapaz de julgar casos desta natureza. Por esta razão, a APAV associar-se-á a uma iniciativa conjunta de várias organizações junto do Conselho Superior da Magistratura.”
O acórdão do Tribunal da Relação do Porto redigido pelo juiz desembargador Neto de Moura, e assinado também por Maria Luísa Arantes, tornou-se viral (pode lê-lo aqui). O juiz do Porto atribuiu a culpa a uma mulher que foi vítima de agressões. O motivo: o facto de a mulher ter traído o marido. No acórdão da Relação do Porto é feita referência à Bíblia como forma de desculpar os actos dos agressores, o marido e o amante da mulher em causa.
Leia o comunicado da APAV na íntegra
«A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima manifesta o seu mais veemente repúdio face ao Acórdão da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto (Processo n.º 355/15.2 GAFLG.P1), relativo a um caso de violência doméstica, detenção de arma proibida, sequestro, perturbação da vida privada e injúrias.
Esta decisão judicial reflete um total desfasamento face à realidade atual e face a uma sociedade que é felizmente muito menos tolerante a atos de violência como os que originaram o referido processo judicial do que aquela que os Senhores Juízes Desembargadores responsáveis por esta decisão parecem idealizar.
Na realidade, recorrer à Bíblia ou ao Código Penal de 1886 para fundamentar a ideia de que o adultério é fortemente censurado pela comunidade e que, consequentemente, esta vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem sobre a mulher, é fazer tábua rasa não só da evolução social verificada em Portugal nos últimos 40 anos, mas também da trajetória efetuada pelo direito penal português, no sentido de se despir ao máximo de considerações e conceitos de natureza moral, difíceis de operacionalizar porque amplamente subjetivos.
A fundamentação subjacente a esta decisão judicial, para além de iníqua, é perigosa, na medida em que, ao manifestar compreensão perante atos violentos tão graves, legitima de algum modo comportamentos futuros de idêntica natureza. Constitui por isso esta decisão um fator de risco que não pode ser subestimado. Não se trata da mera opinião de um cidadão, manifestada num círculo de amigos ou nas redes sociais. Trata-se do exercício da função jurisdicional por um órgão de soberania do Estado, o que reveste esta situação de extrema gravidade.
O mesmo Estado que, nos últimos anos tem, e bem, investido fortemente na prevenção e combate à violência doméstica, através da adoção de legislação, políticas públicas e práticas cada vez mais promotoras dos direitos das vítimas e menos transigentes perante estas formas de violência, não pode, nem deve, dar ao mesmo tempo sinais contrários, no sentido da minimização e desculpabilização face a este flagelo.
Acresce que o Senhor Juiz Desembargador Neto de Moura, Relator deste processo, é reincidente na utilização deste tipo de fundamentação, o que o torna manifestamente incapaz de julgar casos desta natureza. Por esta razão, a APAV associar-se-á a uma iniciativa conjunta de várias organizações junto do Conselho Superior da Magistratura.
Estamos certos de que se trata de uma infeliz exceção (embora não única) e acreditamos que a esmagadora maioria dos magistrados portugueses não se revê nesta iniquidade, não deixando, no entanto, a decisão do Tribunal da Relação do Porto de ser um claro e preocupante sinal do muito que ainda há por fazer nesta matéria, quer junto dos operadores do sistema de justiça quer, em geral, na sociedade portuguesa.”
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