Espetáculo “Arus Femia” parte do cultivo de arroz guineense para falar de memória e resistência

“Arus Femia”, de Zia Soares, é um espetáculo sobre resistência, memória e procura de um caminho perante a adversidade, inspirado nas mulheres guineenses que durante a escravatura garantiram a sobrevivência escondendo sementes de arroz nos cabelos.

Espetáculo

Com estreia marcada para dia 21 de março no Teatro Campo Alegre, no Porto, “Arus Femia” – cuja tradução do crioulo guineense para português é “arroz fêmea” — é um espetáculo que nasce de uma história ancestral contada à encenadora Zia Soares, sobre a época (há 400 anos) em que mulheres guineenses foram forçadas a fazer a travessia para o continente americano em navios negreiros.

A ideia base surgiu “quando um amigo meu guineense partilhou comigo que durante o período colonial e da escravatura, quando pessoas da África Ocidental foram levadas para as Américas, as mulheres, nomeadamente as mulheres guineenses, levaram com elas próprias, nos seus próprios corpos, nos seus cabelos, mais concretamente, sementes de arroz”, disse a encenadora e atriz Zia Soares à agência Lusa, à margem de um ensaio.

“E as mulheres, penso eu, que sem saber para onde iam, sabiam que era certamente um destino mau, garantiram qualquer coisa, levaram qualquer coisa que pudesse garantir a sua sobrevivência, a sua sobrevivência não só enquanto comida para viver, mas a sobrevivência da sua identidade espiritual”.

Impressionada por essa história, a encenadora passou a visitar com frequência campos de arroz na Guiné-Bissau, onde percebeu como as alterações climáticas estão a ameaçar essa tradição e o próprio país.

O arroz é o alimento mais consumido, globalmente, e na Guiné-Bissau há uma forma muito própria de se plantar arroz, que é chamada a bolanha de água salgada, que exige que haja um equilíbrio perfeito entre a água salgada, que é trazida pelo mar, e a água doce, trazida pela chuva, explicou.

“Nessas minhas ‘residências’ nos campos de arroz, fui percebendo que esse equilíbrio estava altamente comprometido devido à subida do nível de água do mar. Encontrei muitos campos salinizados. Depois, períodos de seca que alternavam com períodos de grande pluviosidade. E nas minhas pesquisas, também encontrei que a Guiné-Bissau era efetivamente um dos países em risco de desaparecer, de ficar submerso em água”.

Então, Zia Soares perguntava às mulheres o que é que elas iriam fazer se a Guiné-Bissau desaparecesse, se fosse inundada por água, porque as suas antepassadas, séculos atrás, “traçaram uma extraordinária estratégia de sobrevivência, que foi usurpada pelos próprios ‘senhores’ quando perceberam que aquelas mulheres tinham a mestria de conseguir plantar arroz e depois fazer germinar e depois manter os grãos de arroz intactos, que era uma coisa desconhecida na América”.

“As mulheres, agora, nestes últimos anos, em que eu lhes perguntei isto, na Guiné-Bissau, disseram, ‘vamos morrer, porque não conseguimos sair daqui, não conseguimos obter vistos e, mesmo que obtenhamos, chegados lá, como é que vamos ser recebidos? Outros que fogem, depois morrem nesta travessia’. E isso teve um enorme impacto em mim”, revelou a encenadora, explicando não conceber aquela aceitação da morte, por uma população que muitos anos atrás recusara essa ideia de morte.

Confessa então que ficou “muito obcecada” a pensar no assunto, a tentar perceber como se sobrevive, e numa das suas idas à Guiné-Bissau, em que esteve sozinha, com o mar, com as árvores, com a natureza e com os bichos, pensou: “Claro, a natureza, ela sempre encontra um caminho. Há sempre um caminho. E nós também podemos encontrar um caminho neste espetáculo”.

A peça apresenta, assim, uma comunidade que, face às crises ambientais e sociais, resiste e prospera, e consegue continuar a viver, plantando arroz e tornando-se parte da própria natureza, assumindo características para lá do humano.

“Eles são rio, são terra, são pedra, e passam o tempo todo como a natureza, a acomodar-se. Se um tronco cai, há um outro que cai por cima, há qualquer coisa que o levanta. A natureza é incrivelmente inteligente, tem uma tecnologia orgânica, e o que eu quis criar aqui foi justamente uma comunidade que tivesse uma partilha tecnológica e orgânica”.

O tempo todo, as personagens em palco estão a ajudar-se, mas essa relação é perturbada pelo aparecimento da personagem “Dormência”, que simboliza memórias latentes, protegendo-se de tempos difíceis até encontrar condições para despertar.

“E ela dorme porque se quis proteger de tudo o que era agreste à sua volta, de tempos de escravidão, tempos de crise ambiental, tempos de guerra, de fomes. E esta comunidade não sabe o que é isso, não tem essa memória”, porque “as memórias nesta comunidade, como na natureza, elas existem, só que não estão estancadas, estão sempre a circular e, por isso, ninguém está preso a um evento catastrófico, há uma mutação constante”.

“Arus Femia” é um espetáculo multidisciplinar, falado em português e em crioulo, que reflete sobre a resiliência, a memória e a busca por um caminho perante a adversidade, recorrendo a teatro, dança, vídeo, música e canto.

“Não há uma prevalência da palavra, não há uma prevalência do movimento, não há uma prevalência do som, não há uma prevalência até dos performers”, explicou Zia Soares.

A música é da autoria de Xullaji, músico, rapper, compositor e professor, que aqui é também ator no espetáculo, colega de longa data de Zia Soares.

Os restantes atores são Albertinho Monteiro, Aoaní, Dionezia Cá, Izária Sá, Ulé Baldé, Urbício Vieira, sendo de Portugal parte do elenco e, outra parte, da Guiné-Bissau.

“Ao longo dos três, quatro anos que andei pela Guiné-Bissau, várias vezes por ano, a trabalhar, também consegui encontrar estas pessoas que fazem parte dos Netos de Bandim, que são coprodutores do espetáculo, assim como o Teatro Municipal do Porto”, onde “Arus Femia” vai estar em cena nos dias 21 e 22 de março, disse Zia Soares.

Ainda no dia 22, haverá uma conferência no Rivoli — Teatro Municipal do Porto, intitulada “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, para falar sobre a migração do arroz africano pelo mundo, com Judith Carney, professora norte-americana de geografia e especialista em ecologia e desenvolvimento africanos, segurança alimentar, género e mudanças agrárias, e contribuições africanas para a história ambiental do Novo Mundo.

“Arus Femia” também conta com a participação de José Felipe Fonseca, engenheiro agrónomo da Guiné-Bissau, especializado em biodiversidade, sociedade e saúde humana, história dos escravizados africanos e do seu legado universal.

O espetáculo segue depois para Lisboa, onde se apresentará, no dia 02 de abril, no Centro de Arte Moderna (CAM), da Fundação Calouste Gulbenkian, que é também parceira no espetáculo.

De 07 a 11 de maio, “Arus Femia” vai estar no Teatro do Bairro e, no dia 31 de maio, vai estar em Bissau, a participar na primeira Bienal da Guiné-Bissau.

*** Ana Leiria (texto) e Manuel de Almeida (fotos), da agência Lusa ***

AL // MAG

By Impala News / Lusa

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