Faltam cabras e pastores nas terras da chanfana

Faltam cabras e pastores nas terras da chanfana

A chanfana começa a ser, por estas alturas, alvo de festivais gastronómicos em diversos concelhos do interior do distrito de Coimbra, mas no território faltam cabras e pastores.

Vila Nova de Poiares arrancou este mês com a sua semana de 11 dias dedicada à chanfana, seguindo-se depois os concelhos da Lousã, Penela e Miranda do Corvo, com eventos ao longo deste semestre que têm como protagonista aquele prato tradicional de cabra assada em caçoilas de barro com vinho tinto.

Todos estes concelhos esperam milhares de comensais para provar a iguaria, que se mantém na ementa dos restaurantes ao longo de todo o ano e que tem vindo a ganhar cada vez mais fama.

No entanto, as cabras que alimentam a procura não vêm destes concelhos serranos.

“O território é procurado nesta altura e noutras pela chanfana. Mas a pergunta é: Onde é que está a matéria-prima? Onde é que estão os pastores e onde é que estão as cabras?”, pergunta o presidente da Junta de Freguesia de São Miguel de Poiares, João Carlos Feteira.

Naquela freguesia de Vila Nova de Poiares, tem-se procurado reverter o abandono do pastoreio e em 2019 foi criado o projeto do Capril da Serra, numa parceria entre junta, município e comunidade de baldios, e que conta hoje com um efetivo de 120 cabras, pequeno, mas “o maior do concelho e talvez o maior da região”, diz.

Ali, dois funcionários da junta de freguesia são pastores a tempo inteiro, num modelo de pastorícia extensiva, com as cabras serranas a assegurarem a limpeza de matos e floresta de cerca de 400 hectares de baldios, fazendo as vezes de motorroçadoras.

Naquele projeto, procurou dar-se a volta a uma profissão pouco atrativa, seja pelo rendimento conseguido, seja pela dedicação exigida — as cabras não conhecem férias, feriados ou dias santos.

Mesmo tendo dois funcionários que se vão revezando para assegurar férias e folgas, “é preciso um bocadinho de paixão e gosto pelos animais”, diz à agência Lusa João Carlos Feteira, notando que o horário da função pública não se coaduna com a vida de pastor.

De momento, o rendimento obtido já assegura a cobertura da despesa corrente, com exceção dos salários dos dois funcionários, e, com 300 cabeças, assegurar-se-ia a sustentabilidade do projeto.

No entanto, o objetivo não é o lucro, mas reativar, por um lado, uma atividade em desuso e, por outro, assegurar a limpeza do território, propenso a incêndios.

“Podem alugar os helicópteros que quiserem, mas não há volta a dar. Temos de voltar um bocadinho atrás”, afirma João Carlos Feteira, defendendo apoios do Governo para mudar o paradigma.

Rui Feteira, de 55 anos, trocou a profissão de motorista de camiões para ser pastor naquele capril e diz não estar arrependido.

O trabalho é exigente, mas os sacrifícios são ultrapassados pelo amor aos animais, algumas delas com nome, como a Barbie ou a Cega, que vêm ao seu encalce assim que as chama e que o enchem de mimos quando se senta.

“Não havendo gosto nisto, não vale a pena, que não dá para andar aqui ao pontapé e à paulada. É preciso respeito por elas”, diz, enquanto mostra fotografias do pôr-do-sol no telemóvel, que vai colecionando no pastoreio pela serra.

Ali perto, na pequena aldeia da Boiça, também no concelho de Vila Nova de Poiares, um rebanho de 30 cabras faz-se ouvir numa manhã fria de janeiro, enquanto sobe um monte todo coberto de geada.

Todos os dias, Armando Santos, de 47 anos, vai abrir e fechar o cabril, faça sol ou faça chuva, numa profissão onde não há lugar a “feriados ou dias santos”.

Neste momento, são cerca de 30 cabras, mas quando começou o projeto, em 2008, eram 50.

“E mesmo assim, ainda são muitas, que não tenho tempo para andar com elas no pastoreio”, conta Armando Santos, que se divide entre as cabras, estufas e um olival.

São poucos os pastores que conhece na região e os que conhece têm meia dúzia de cabras para consumo próprio, numa lógica de agricultura de subsistência.

“Lembro-me de um colega que fazia as contas com máquina de calcular, mas não dá para fazer contas. Há muitos imprevistos e depois desistem”, conta.

Nuno Carolino, da Sociedade Portuguesa de Recursos Genéticos Animais, nota que Portugal passou de cerca de quatro milhões de ovelhas e cabras em idade adulta para menos de três milhões no espaço de 30 anos.

No caso da caprinicultura na região Centro, a quebra ainda foi mais acentuada, registando-se uma redução de 42% do efetivo entre 2000 e 2023 – de 178 mil cabras adultas para 104 mil.

“Na região Centro, havia sobretudo pastoreio de montanha, em que os animais têm de estar acompanhados por pastor, ao contrário de outras zonas do país, onde há produção intensiva, com explorações com vedações”, afirma o investigador e especialista na área da conservação de animais, nomeadamente caprinos.

Esse tipo de pastoreio extensivo foi desaparecendo por ser uma “atividade muito mal remunerada”, num trabalho de condições duras, ao mesmo tempo de que as regras sanitárias se tornaram muito mais exigentes.

“É uma carne que é cara para o consumidor final, mas que para o produtor é muito mal paga”, nota.

Como uma das soluções, o especialista Nuno Carolino aponta para a necessidade de os pastores passarem a ser remunerados pelos serviços de ecossistema que prestam, com as cabras a representarem uma forma de limpar os terrenos, numa região atingida ciclicamente por incêndios.

No restaurante Ferrador, em Miranda do Corvo, aberto há 50 anos, a chanfana vendia-se pouco quando o espaço era ainda uma taberna e o prato não era conhecido por pessoas de fora.

Hoje, há autocarros de todo o país, durante todo o ano, que se deslocam até àquele restaurante para comer chanfana, diz à agência Lusa José Silva, proprietário do restaurante, onde começou a trabalhar com 13 anos.

Se antes se fazia chanfana sobretudo com cabras da região, hoje José Silva já não se pode dar a esse luxo e tem um fornecedor em Seia, no distrito da Guarda.

“Ele também deve precisar de ir buscar fora [do país], mas a carne é boa. Eu só quero qualidade”, afirma, referindo que na região não há quem dê resposta a uma procura que tem vindo a aumentar — no Ferrador, assa-se em média 80 a 100 quilos de chanfana por semana.

Também Madalena Carrito, confrade-mor da Confraria da Chanfana, sediada em Vila Nova de Poiares, confirma a falta de cabras e pastores.

“A matéria-prima já não vem da região. Continua a haver produção de cabras, mas não há, neste momento, rebanhos em número suficiente para responder ao que se consome”, constatou, acreditando que, além de cabras de várias zonas do país, haverá “muita carne importada”.

Alerta Madalena Carrito que para se defender a chanfana também tem de se defender incentivos e apoios que assegurem efetivos caprinos pelo país.

“Se nada for feito, qualquer dia não temos cabras no país para fazer chanfana”, disse.

*** João Gaspar (texto) e Paulo Novais (fotos), da agência Lusa ***

JGA // SSS

By Impala News / Lusa

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