“Gostava de aprender até morrer” é teatro e vida em João Mota

“Gostava de aprender até morrer” é peça sem autor, mas é essa que o fundador do Teatro da Comuna, João Mota, gostaria de pôr em palco, porque é tudo e porque as pessoas têm de “continuar a pensar”.

Em entrevista à agência Lusa, a poucos meses de completar 82 anos, o ator e encenador João Mota fala da necessidade de criar públicos, da responsabilidade para com as pessoas na plateia, nessa relação que tem de ser “cara a cara, olhos nos olhos”, e de ter de haver coragem para “se fazer um teatro nacional a sério”.

“A primeira educação deve ser artística, e enquanto não perceberem isto, não há nada a fazer”, disse. “Não é a esquerda nem a direita que vai resolver o problema”, são as pessoas, argumentou, sustentando que, se vier alguém “que perceba isto, a sociedade melhora automaticamente”. Resolvemos muitas coisas pelos afetos, defende.

A conversa com o encenador realizou-se poucos dias após a estreia da nova peça d’A Comuna, que dirige, “23 segundos”, de Miguel Falcão.

João Mota atravessa memórias, num percurso de vida que é também um percurso pelo teatro, um e o mesmo, desde a infância, quando se estreou na rádio, aos 10 anos, no programa infantil “Meia hora de recreio”, e depois em palco, no Teatro Nacional D. Maria II, aos 15.

São mais de sete décadas nos palcos, por isso afirma com segurança: “O teatro não pode ser panfletário […], seja para um lado ou para outro”, porque “o teatro é uma obra de arte”, na qual o “criador é o ator onde habita o texto”, apesar de o autor estar lá. Além disso, acrescenta, o teatro tem um “gestor de conflitos”, o encenador.

“O ator quando sai de casa já tem conflitos com o filho, com o marido, com a mulher. Tem conflitos para apanhar o transporte, tem conflitos ao decidir se vai de autocarro ou de elétrico, com horários a cumprir; às vezes tem conflitos com colegas do teatro e tem conflitos com a personagem […]. O encenador tem de jogar com tudo isto, porque cada um é um caso, cada um é um indivíduo”, afirmou, assegurando que esta foi uma das “grandes lições” aprendidas com o professor e pedopsiquiatra Arquimedes Silva Santos, pioneiro da Escola Superior da Educação pela Arte do Conservatório, e nos anos que frequentou o curso do encenador Adolfo Gutkin, na Fundação Calouste Gulbenkian.

Foi essa noção que o obrigou a “ir por outro lado”, porque “não sabia muito”. “Fazíamos umas coisas com o [encenador] Peter Brook para uma escola que vinha da Suíça e que já era da Escola Moderna. Depois, em Portugal, fui para a Escola de Educação pela Arte, com [o psiquiatra] João dos Santos e Arquimedes Silva Santos, e fui obrigado a ler muito, a estudar muito”.

Tratava-se, sobretudo, de “fundamentar as ideias”, porque não basta tê-las. “‘Il faut essayer [tem de se tentar]’, como insistia o mestre Peter Brook”, recordou.

E como o ator é um criador, “tudo tem de habitar nele”, disse João Mota. O ator “tem sentimentos, tem emoções; os sentimentos são iguais em todas as pessoas, todos nós nos emocionamos […] E agora é proibido emocionar-nos”.

O núcleo familiar de João Mota era constituído pela mãe, pela tia, pela avó, pela irmã (a docente e atriz Teresa Mota, 1940-2022). “Nunca fui misógino”, frisou.

Nascido em Tomar, em 22 de outubro de 1942, fixou-se em Lisboa aos 7 anos, com a família. Contou à Lusa como a mãe lhe punha o dinheiro da renda de casa no bolso e o mandava entregar ao senhorio. Aos 10 anos já estava “habituado a ouvir que era o homem da casa”, o que o ajudou a “ficar sozinho e a pensar sozinho”.

“A minha mãe era ótima, a minha avó era maravilhosa, e a minha irmã também, mas era carga a mais. Ficava sozinho, sentado numa arca em casa, a pensar”.

O teatro ajudou-o muito, admitiu. “O ter de ultrapassar-me, porque era muito fechado e muito tímido”. Mesmo assim, no Teatro Nacional diziam-lhe que parecia “um bicho-do-mato”. “Habituei-me a fechar-me e ainda bem, porque o teatro, muitas vezes, é uma selva”, um meio pequeno.

Permaneceu na companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, concessionária do Nacional D. Maria II, durante dez anos. Trabalhou no cinema, ensinou teatro. Mas foi o palco que desde sempre o moveu, a “grande paixão”.

Lamenta que o D. Maria II não tenha uma companhia residente, ao contrário de outrora. Lembra a companhia de Teatro Nacional Popular, dirigida por Francisco Ribeiro (Ribeirinho), que tinha dezenas; a Colaço-Robles Monteiro que tinha 30 atores de todas as gerações: Palmira Bastos, Amélia Rey Colaço, João Perry, José de Castro, Canto e Castro, Lourdes Norberto ou Mariana Rey Monteiro, com quem se cruzou.

“Hoje não há uma companhia nacional, nem em Lisboa nem no Porto”, sublinhou João Mota. Os teatros nacionais tornaram-se meras “salas de programação”.

Nos três anos que dirigiu o D. Maria II (2011-2014), formou uma equipa para a sala Estúdio, com atores recém-formados pela Escola Superior de Teatro e Cinema, “quase uma companhia” para fazer teatro de autores portugueses para a infância e a juventude.

“É necessário criar públicos”, sustentou João Mota à Lusa, porque o teatro “é a arte que fala no sujeito”.

“Temos uma relação com o público cara a cara, olhos nos olhos, somos responsáveis pelo crescimento daquelas pessoas que ali estão”, responsáveis por ter “de passar coisas que tenham a ver com elas” e que lhes “levante dúvidas e problemas”.

Para que a situação atual no teatro se inverta, João Mota afirma que, “primeiro, há que ter a coragem de se fazer um teatro nacional a sério”, algo que – defendeu – o Teatro da Trindade podia fazer. “O Diogo [Infante] podia criar uma companhia, é homem para isso”, afirmou.

O problema, porém, “é o dinheiro”. “Ninguém está a dar dinheiro para a cultura. A cultura tem o mínimo e ainda estamos a pagar a televisão, que dantes nãs pagávamos.”

CP // MAG

By Impala News / Lusa

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