Maior inundação da história da Terra atingiu Gibraltar e a Sicília

Na maior inundação de que há registo, a água “desceu mais depressa do que um carro a alta velocidade por uma encosta com um quilómetro de altura em direção ao Mar Mediterrâneo, escavando um vale com a profundidade de um arranha-céus”.

Maior inundação da história da Terra atingiu Gibraltar e a Sicília

Há pouco mais de 5 milhões de anos, a água do Oceano Atlântico encontrou um caminho através do atual Estreito de Gibraltar. De acordo com esta teoria, a água oceânica “desceu mais depressa do que um carro a alta velocidade por uma encosta com um quilómetro de altura em direção ao Mar Mediterrâneo, escavando um vale com a profundidade de um arranha-céus”, descreve Daniel García-Castellano, geólogo do Instituto de Geociências de Barcelona, que defende como ocorreu a maior inundação da história da Terra.

O Mediterrâneo era, na altura, “uma bacia em grande parte seca e salgada, mas recebeu tanta água que se encheu em apenas alguns anos – talvez até em poucos meses”, diz. No seu auge, a inundação correspondeu a “cerca de mil vezes o atual caudal do rio Amazonas”.

É pelo menos a tese que Daniel García-Castellano e o seu colega Paulo Carling, professor Emérito de Geomorfologia da Universidade de Southampton, apresentaram num estudo de 2009 sobre um desfiladeiro subaquático escavado ao longo do Estreito de Gibraltar que se presume ter sido “esculpido por esta enorme cheia”. Se a teoria estiver correta (contestada por alguns cientistas), a chamada ‘megainundação de Zanclean’ terá sido “a maior já registada na Terra”.

Alegações extraordinárias como esta, contudo, exigem “evidências extraordinariamente sólidas”. “A nossa investigação mais recente analisou rochas sedimentares da era Zanclean que parecem registar como a água atravessou uma fenda entre a atual Sicília e a África continental para reabastecer a metade oriental do Mediterrâneo.”

Como os cientistas rastrearam a inundação

A Sicília (a grande ilha junto à ponta da ‘bota’ italiana) ainda faz parte de uma divisão entre as bacias mais escuras do Mediterrâneo, sombreadas num azul mais profundo [GEBCO / Centro Oceanográfico do Reino Unido, CC BY-NC-SA]
A descoberta destes cientistas é a mais recente reviravolta numa história que começou no final do século XIX. Foi nessa altura que os geólogos que estudavam afloramentos rochosos ricos em sal em redor do Mediterrâneo se consciencializaram cada vez mais de que algo incomum tinha acontecido há aproximadamente 5 a 6 milhões de anos, muito antes das recentes eras glaciais: o mar tinha secado. Os geólogos batizaram esta era de Messiniana e a seca acabou por ficar conhecida como crise de salinidade messiniana. Na década de 1970, cientistas perfuraram pela primeira vez rochas sedimentares da era Messiniana em altas profundidades no Mediterrâneo e fizeram três surpreendentes descobertas.Primeiro, encontraram uma enorme camada de sal – com quilómetros de espessura – abaixo de grande parte do fundo do mar. Isto “confirmou que uma vasta mudança ambiental tinha ocorrido há cerca de 6 milhões de anos, precisamente quando as placas tectónicas se deslocaram e o mar ficou em grande parte isolado do Oceano Atlântico”.

Em segundo lugar, logo acima desta camada de sal, encontraram sedimentos com fósseis de lagos rasos e com baixo teor de sal. Isto sugere que o Mar Mediterrâneo “desceu mais de um quilómetro em relação ao nível atual e, como a maior parte da água evaporou, o sal permaneceu”. Uma série de lagos terá permanecido nas partes mais baixas da bacia, “refrescados e mantidos relativamente isentos de sal por alguns riachos”. Esta interpretação foi também corroborada por levantamentos sísmicos do fundo do mar que revelaram “rios que outrora cortavam uma paisagem seca”.

E em terceiro, as camadas rochosas acima do sal “regressaram abruptamente a sedimentos mais típicos de águas profundas”. “Sabemos agora que menos de 11% das espécies marinhas do Mediterrâneo sobreviveram à crise, demonstrando o quão grande e duradouro foi o impacto na vida marinha.” O termo Dilúvio Zancleano foi cunhado na década de 1970 para referir-se ao fim da crise, sem que os cientistas soubessem realmente em que consistia ou o tempo necessário para o reabastecimento da bacia seca do Mediterrâneo.

O avanço seguinte ocorreu em 2009, quando dados geofísicos do túnel planeado entre África e Europa, através de Gibraltar, sugeriram que uma enorme vala subaquática entre o Oceano Atlântico e o Mar Mediterrâneo deve ter sido criada por uma inundação repentina e cataclísmica.

Recarga cataclísmica


Os eventos que terão ocorrido no Mediterrâneo há 5 a 6 milhões de anos

“A nossa pesquisa mais recente corrobora esta hipótese. Como parte de uma equipa liderada pelo cientista maltês especializado em fundos marinhos Aaron Micallef, explorámos a região onde as águas do dilúvio que encheram a bacia ocidental do Mediterrâneo deveriam ter atingido uma crista de terras mais altas que liga a atual África e a Itália, conhecida como Sill, da Sicília. Perguntámo-nos se haveria alguma evidência de uma segunda megainundação à medida que o Mediterrâneo oriental se enchia.

Montando o puzzle

Maior inundação da história da Terra atingiu Gibraltar e a Sicília
Foto aérea de uma crista erodida pela megainundação no sudeste da Sicília [Aaron Micalle]
Giovanni Barreca, um dos coautores deste recente artigo científico, cresceu no sul da Sicília. Percebeu “há muito tempo percebeu que as colinas baixas perto da costa são uma extensão do Sill da Sicília, sobre o qual a megainundação deve ter progredido de oeste para leste”. Pensou, por isso, que a área poderia conter pistas.

Os cientistas visitaram esta parte da Sicília e descobriram que as colinas “eram realmente incomuns”. As suas “formas alinhadas e aerodinâmicas, separadas por depressões profundamente erodidas, são muito semelhantes às colinas aerodinâmicas do estado de Washington, nos EUA”. “As colinas de Washington foram esculpidas por uma megainundação no final da última Era Glacial, quando o vasto Lago Missoula foi represado por um glaciar e esvaziado de forma catastrófica.”

Se as colinas e depressões na Sicília também foram moldadas por uma grande inundação, “então deveríamos encontrar detritos rochosos erodidos da base das depressões no topo das colinas, passados mais de 5 milhões de anos”. E, de fato, encontraram “fragmentos rochosos retorcidos e emaranhados, do tamanho de grandes blocos, ao longo do cume das colinas”. “Eram os mesmos tipos de rocha encontrados nas depressões e também mais no interior.”

Maior inundação da história da Terra atingiu Gibraltar e a Sicília
Restos de uma rocha despejada há 5 milhões de anos no topo de uma colina perto da cidade de Rosolini, na Sicília [Paul Carling]
“Para comprovar o nosso trabalho, desenvolvemos uma simulação computacional (ou ‘modelo’) de como as águas da cheia poderiam ter atravessado uma parte do Sill da Sicília. A simulação mostrou que o fluxo da enchente imitaria realmente a direção das colinas aerodinâmicas”, confere Daniel García-Castellano.

O modelo “mostrou que as colinas teriam sido esculpidas por água com 40 metros ou mais de profundidade, viajando a 115 quilómetros por hora”. “Na única área que modelámos, 13 milhões de metros cúbicos de água por segundo terão inundado a bacia do Mediterrâneo oriental ([para referência: a Amazónia tem hoje tem cerca de 200 mil metros cúbicos por segundo). Notavelmente, isto representa ainda apenas uma fração da água que fluiu primeiro por Gibraltar e depois para a bacia do Mediterrâneo oriental, perto da Sicília”, conclui o geólogo do Instituto de Geociências de Barcelona.

The Conversation

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