Meninas cantam batuco contra violência sexual em Cabo Verde
O grupo de ‘batuco’ “Criança Flor de Revolução” nasceu em novembro, uma ideia de Ângela Nunes, uma peixeira de 33 anos, que quer dar voz às próprias crianças para chamarem a atenção contra a violência sexual que muitas sofrem no país
Praia, 30 jun 2024 (Lusa) — Kellysa tem 11 anos e já sabe fazer a sua própria `txabeta´, principal instrumento do género musical ‘batuco’, que toca com as amigas para dizer não à violência sexual contra crianças em Cabo Verde.
“Eu aprendi a fazer [a txabeta] com a minha mãe”, relata à Lusa Kellysa Lopes, que faz um embrulho com dois panos, um saco de plástico e improvisa o instrumento de percussão, herdado do tempo colonial para contornar a proibição do regime aos tambores.
Está pronta para mais um ensaio com as amigas, num barracão de madeira, forrado com uma rede verde, que é um dos pontos de encontro e de diversão da localidade de Praia Baixo, no concelho de São Domingos, sudeste da ilha de Santiago.
No mês de julho, celebra-se o Dia do Batuco (31 de julho), mais uma razão para caprichar.
“Escolhemos este tema porque há muitas crianças a serem violadas”, disse a batucadeira mirim, que acredita não haver casos na sua zona, mas fica perturbada quando vê as notícias “na televisão”.
De acordo com o relatório sobre a situação da justiça (de agosto de 2022 a julho de 2023), os processos por crimes sexuais registados pelo Ministério Público cabo-verdiano (635) diminuíram 18,2% no último ano judicial e quase metade continuam a ser por abusos sexuais contra crianças.
Já este ano, o Presidente cabo-verdiano, José Maria Neves, enquadrou a violência sexual contra menores entre as “nódoas” do país, que espera que sejam banidas “definitivamente”.
O grupo de Praia Baixo é formado apenas por meninas, dos oito aos 15 anos, da localidade piscatória, com cerca de 1.400 habitantes, e que fica a 30 minutos de carro da Praia, capital do país.
“Elas têm muito empenho, gostam, então decidimos criar um grupo”, disse a mentora da iniciativa, que quer que os miúdos também toquem e cantem o batuco, mas “têm vergonha”, e por enquanto são apenas espectadores dos ensaios.
“O batuco é uma tradição que encontrei em Cabo Verde e não quero que morra”, apontou a líder, que também tem duas filhas no grupo, e que já compôs oito músicas, apelando igualmente à responsabilidade parental.
Outra batucadeira é Cleireane Fernandes, de 13 anos, que faz de tudo no grupo: canta, dança e batuca numa ‘txabeta” feita com pele sintética, normalmente utilizada para forrar sofás e que emite um som com maior qualidade.
“Sinto-me muito feliz por estar a cantar com as minhas colegas. Quero continuar com o batuco”, prometeu a menina, que estuda no 7.º ano, e que, tal como a amiga, quer ser hospedeira de aviação ou cantora.
Com cerca de 14 mil habitantes espalhados por 21 localidades, São Domingos tem 23 grupos de batuco, mas somente o de Praia Baixo é formado por crianças.
A iniciativa é aplaudida pela presidente da Assembleia Municipal do concelho, Felismina Moreno, natural de outra zona (Lora) e que ajudou o grupo a mobilizar as ‘txabetas’.
“As crianças estão a dar um contributo inestimável que nos faz pensar em grande com esse grupo”, referiu à Lusa.
Cabo Verde instituiu há dois anos o dia 31 de julho como Dia Nacional do Batuco, manifestação cultural secular que nasceu na ilha de Santiago, essencialmente apresentada por mulheres, conhecidas como batucadeiras.
Combina percussão, canto e dança: a mulher canta sobre o dia-a-dia, mas também sobre política e cultura, por vezes em tom crítico.
Com a proibição do uso de tambores durante o período colonial, as mulheres passaram a ‘batucar’ em peças de tecido, denominadas de “txabeta”, tradição que ainda se mantém.
Segundo as autoridades, o arquipélago conta com mais de 100 grupos — há outros na ilha do Maio -, com mais de 1.000 pessoas, incluindo alguns homens.
ROZS/RIPE // MLL
By Impala News / Lusa
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