Morreu o cineasta francês Pierre-Marie Goulet, realizador da homenagem a Giacometti
O cineasta francês Pierre-Marie Goulet, radicado em Portugal desde 1990, realizador de “Polifonias”, de homenagem ao musicólogo Michael Giacometti, morreu no sábado, anunciou a Academia Portuguesa de Cinema na noite de domingo.
Pierre-Marie Goulet nasceu em França em 1950 e era considerado “um verdadeiro poeta da imagem”, como escreve a Academia, sobretudo através do cinema documental e de obras como a trilogia dedicada à poesia de Virgínia Dias, a camponesa de Peroguarda, Ferreira do Alentejo, que se cruzou com Giacometti, o cineasta António Reis, o músico José Mário Branco e o jornalista Adelino Gomes.
Goulet iniciou a sua carreira como realizador em 1970, contando sobretudo com documentários e curtas-metragens na sua filmografia, como “Mevlevi”(1970), “Corps Morts” (1972), “Um Paysan des Alpes” (1973), “Naissance” (1973), “Ô Gaule” (1974), “ICI” (1975), “Djerrahi” (1978), “Balade” (1978), “Site” (1980), “At Père Lachaise” (1986) e “Plage”(1987).
Depois de ter participado na série “Crónicas de França”, dirigiu “Feitos e Ditos de Nasreddin” (1993), a que voltaria em 2016 (“Feitos e Ditos de Nasreddin II”), mais de duas dezenas de curtas-metragens com base nas histórias e na ingenuidade de Nasreddin Hodja, figura popular nos romanceiros do Próximo e do Médio Oriente, assim como dos Balcãs, também presente em textos da Índia, China, Norte de África, Arménia e Grécia. Em Portugal, destaca-se a trilogia de longas-metragens “Polifonias — Paci é saluta, Michael Giacometti” (1998), “Encontros” (2006) e “O Último Porto – Além das Pontes” (2016), que cruza a homenagem ao etnomusicólogo corso radicado em Portugal e a expressão de Virgínia Dias, que recentemente publicou a antologia “Como um pedaço de terra virgem”.
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“O Último Porto – Além das Pontes”, o seu último filme, estreado no DocLisboa 2017, conta com a colaboração de Sérgio Godinho e ainda com o músico Kudsi Ergüner e as pesquisas da escritora Manuela Barros Ferreira, além da poesia de Virgínia Dias.
Trata-se de um “encontro entre as culturas portuguesa e turca, a evocar a presença silenciosa da cultura muçulmana em território português”, como descreveu a Cinemateca Portuguesa, que exibiu a obra. A música dita a estrutura de “Polifonias”, uma produção que conjuga o cante português, a tradição corsa e a figura de Michel Giacometti.
Quanto a “Encontros”, embora tenha também uma estrutura musical, como o próprio realizador sublinhava na sua apresentação, a obra está “mais ligada a uma acumulação de memórias que se transformam pouco a pouco”, e que têm o cinema de Paulo Rocha, o filme “Mudar de vida” e a praia do Furadouro, entre os seus muitos pontos de referência.
“‘Encontros’ evoca coisas desaparecidas e a presença dessas coisas”, disse Goulet, sobre a obra.
“Cada vez que faço um filme levo muito tempo a perceber o que está dentro dele. Isso vem da minha maneira de fazer filmes. Posso trabalhar até à obsessão antes de começar a filmar, sobre todos os dados, mesmo longínquos, à volta do filme, e depois esquecer tudo […]. As imagens filmadas precisam de ser esquecidas antes de ressurgirem por novos caminhos que eu próprio não conheço”, disse na entrevista para o projeto “Novas & velhas tendências no cinema português contemporâneo”, do Centro de Investigação em Artes e Comunicação, da Escola Superior de Teatro e Cinema, com a colaboração da Universidade do Algarve (2011-2012).
Na filmografia de Goulet consta também “A Casa e a Música”, projeto sobre a Casa da Música, no Porto.
Enquanto programador, Goulet foi responsável por ciclos como “O Olhar de Ulisses”, da Capital Europeia da Cultura Porto 2001, “Um Rio, Duas Margens”, do festival Doc Lisboa, em 2002, e de “O cinema à volta de cinco artes, cinco artes à volta do cinema”, do Festival Temps d’Images e da Cinemateca Portuguesa, em 2012.
Traduziu para francês os diálogos de “Juventude em marcha”, “No quarto da Vanda” e “O Sangue”, de Pedro Costa, “Quem és tu?”, de João Botelho, “A comédia de Deus” e “As bodas de Deus”, de João César Monteiro. A Academia Portuguesa de Cinema recorda que Pierre-Marie Goulet participou ativamente no programa pedagógico “O Cinema, cem anos de juventude” e nos ‘workshops’ “O Primeiro Olhar”, destinados a jovens dos 10 aos 16 anos, organizados pela Associação Os Filhos de Lumière, da qual foi cofundador.
Pierre-Marie Goulet é companheiro da realizadora portuguesa Teresa Garcia, que dirigiu filmes como “A Tempestade” e “O Segredo da Casa Fechada”, e trabalhou com cineastas como João César Monteiro (“A Comédia de Deus” e “Le bassin de J.W.”), Manoel de Oliveira (“Non, ou a vã glória de mandar”), Margarida Gil (“Rosa Negra”) e o próprio Pierre-Marie Goulet (“Além das Pontes”, “Feitos e Ditos de Nasreddin II”, “Encontros”, “Polifonias”).
Na entrevista para as “Novas & velhas tendências no cinema português contemporâneo”, Pierre-Marie Goulet conclui: “A civilização, hoje, tem uma coisa terrível: está feita de propósito para se perder a memória. É muito simples: se não temos memória, podem fazer de nós o que quiserem. Não temos ponto de referência. Dou um exemplo estúpido: vou comprar um tomate, e sabe só a água. Dizem-me que é um tomate, tem forma de tomate, tem cor de tomate, mas é só água, não tem sabor. Se ninguém alguma vez te deu um tomate com sabor a tomate, como é que vais saber a diferença entre os dois? A memória é fundamental, senão vão continuar a dar-te tomates que são só água.” O velório do cineasta realiza-se hoje, a partir das 14:00, na igreja de S. Domingos de Benfica, em Lisboa, de onde o funeral partirá, na terça-feira, às 10:00, para o cemitério de Benfica, indica a Academia Portuguesa de Cinema.
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