Um dia no tribunal de Mbzanza Congo faz-se de mandioca, um leitão e uma falsa acusação de feitiçaria

Em Angola, as autoridades tradicionais continuam a ter peso e funcionam paralelamente ao Estado, incluindo em matéria de justiça, com julgamentos em tribunais consuetudinários, decididos segundo os usos e costumes, como é prática em Mbanza Congo.

Um dia no tribunal de Mbzanza Congo faz-se de mandioca, um leitão e uma falsa acusação de feitiçaria

Formalmente é um tribunal como os outros: tem réus, testemunhas e juízes, escrivães, há queixas e sentenças que são lavradas em ata e de cumprimento obrigatório.

Mas os casos são substancialmente diferentes dos que ocorrem em Portugal.

Entre os casos mais frequentes estão as acusações de feitiçaria muitas vezes motivadas por conflitos entre clãs causados por assuntos corriqueiros como um namoro reprovado pela família.

No julgamento a que a Lusa assistiu, a paixão contrariada entre um “Romeu” e uma “Julieta” de Mbanza Congo estiveram no centro de uma acusação de feitiçaria.

A mãe de “Julieta”, desgostosa com a escolha amorosa da filha, tentou inicialmente dissuadi-la, sem sucesso, e acabou a ameaçar “Romeu” que “ia ver como era”.

Tal como a tragédia shakesperiana, passada no século XVI em Itália, também esta ocorrida em Angola nos dias de hoje teve um final trágico.

Este ano, “Romeu” adoeceu e morreu e a família acusou a mãe de Julieta de o ter “comido” (matado).

A mãe, Graça Adelini, — que conseguiu provar a sua inocência após os adivinhadores a que recorreu declararem que o seu coração “estava limpo” — voltou a tribunal para receber uma indemnização, mas lamenta, chorando, o sofrimento causado pela falsa acusação, que a fez perder as amizades no bairro e ver os próprios filhos insultados como “filhos da bruxa”.

A sentença é dada por Afonso Mendes, figura máxima da autoridade tradicional e representante do rei do Congo, e os 24 elementos da corte real que formam o lumbu, tribunal consuetudinário que julga questões comunitárias.

A sessão que decorre em kikongo (língua falada pelos bakongo do norte de Angola) inicia-se por volta das 09:30 e alguns populares tomam a palavra para apresentar os seus assuntos.

Um homem queixa-se de estar a ser acusado de feitiçaria e apresenta uma carta que vai dar inicio ao seu processo.

Um outro questiona o tribunal sobre o andamento do seu caso, aberto há três anos, e que tem a ver com uma disputa de terrenos, esperando ainda por uma solução definitiva.

Um outro, vindo do Noqui, a 150 quilómetros de distância, pede a intervenção das autoridades porque tem medo de ser morte, depois de ter sido expulso e ameaçado de morte por vizinhos que querem ficar com o seu terreno e lhe destruíram a casa.

São problemas que envolvem clãs e que Afonso Mendes encaminha para as autoridade angolanas.

“Isso é crime, vai ter de apresentar queixa na polícia”, responde ao apreensivo queixoso do Noqui.

“Disseram-lhe: tu não és daqui, os teus antepassados eram escravos, tens de sair. Ele diz que estão a vir com as catanas para o matar”, traduz Angelina, uma das integrantes da corte.

Os clãs determinam normalmente a titularidade das terras e cada um deve respeitar os limites impostos para prevenir conflitos, explica Afonso Mendes.

Já nos casos de feitiçaria, são consultados especialistas “adivinhadores” que ajudam a deliberar sobre a inocência ou culpabilidade da pessoa acusada que, se for inocentada, poderá receber uma indemnização, enquanto os acusadores “vão receber aconselhamento para se deixarem dessas práticas”.

O julgamento decorre com os conselhos a dirigirem palavras sábias e recomendações sob a forma de parábolas, cânticos e danças que servem também de ensinamentos.

Existem igualmente regras a seguir: a mulher não deve entrar de calças, o homem não entra de calções, é proibido cruzar as pernas, não se fala alto e antes pede-se permissão. O incumprimento é passível de multa e os mais velhos vão sublinhando a importância do respeito.

No lumbu cada um tem o seu papel. Há juízes, conselheiros, inspetores, pessoas ligadas ao protocolo, um secretário, um porta-voz, animadores, e um escrivão, na mesa do qual se encontram dois dossiês cheios, atestando que não há mãos a medir com os processos, que vão a tribunal às quartas-feiras e sextas-feiras.

É chegada a altura da sentença e Graça Adelini, a acusada de feitiçaria, terá de dizer se aceita a indemnização que lhe colocam à frente: um porquinho, um alguidar de mandioca, duas grades de cerveja e 5.000 kwanzas (cerca de cinco euros).

Após sair para conversar com os familiares, Graça rejeita a indemnização, por considerar que o leitão demasiado pequeno não compensa a humilhação e vergonha que sente no bairro.

Segue-se um processo negocial em que ambas as partes saem para conferenciar sobre as indemnização que Graça continua sem aceitar, enquanto os familiares da acusada protestam de forma mais acalorada e ameaçam que vão “dar porrada” a quem continuar a chamá-la de bruxa.

Os juízes acabam por determinar que a indemnização deve ser aumentada e entregue na próxima semana, concluindo-se a sessão sem agradar em pleno a nenhuma das partes.

Graça Deliani diz à Lusa que não está contente porque as coisas que lhe trouxeram “não estão completas” e emociona-se ao falar da briga que a levou a sair do bairro.

“O moço veio a falecer e acusaram-me a mim, que eu ‘comi’ o moço (…), qualquer sítio onde eu estou, estão sempre a apontar o dedo, que esta aqui é bruxa, é feiticeira, estão a isolar-me, não posso falar com ninguém”, chora.

A mãe do jovem, Fineza dos Santos, recorda que Graça disse ao filho “vou-te mostrar” antes deste adoecer, mas, como reza, “não gosta dessas coisas do feiticismo” e diz que está ultrapassado.

Agora quer resolver a situação, mas lamenta: “vou gastar mais quanto?”.

*** Raquel Rio (texto) e Ampe Rogério (fotos), da agência Lusa *** 

RCR // JMC

By Impala News / Lusa

Impala Instagram


RELACIONADOS