Universidade de Kharkiv lembrou-se da covid-19 para sobreviver à invasão

A Universidade de Kharkiv inspirou-se na sua própria experiência durante a pandemia de covid-19 para sobreviver à invasão russa, tendo neste percurso vários dos seus alunos e professores sido mortos e 25% das suas instalações atingidas pelos bombardeamentos.

Universidade de Kharkiv lembrou-se da covid-19 para sobreviver à invasão

Ao fim de dois anos de invasão russa, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, que chegou às portas da segunda maior cidade ucraniana, no leste do país, o vice-presidente da Universidade de Kharkiv, Anatoliy Babichev, afirma, em entrevista à agência Lusa, que, após “um período muito, muito difícil”, no começo das hostilidades, a instituição adaptou-se, incorporou métodos ‘online’ e novas abordagens educativas “e não se pode dizer que a qualidade do ensino tenha piorado”.

As feridas dos raides russos mantêm-se visíveis na colossal Praça Svobody, que arrasaram a sede do governo da região, e onde se erguem as torres da universidade, construídas em linguagem austera soviética e que permanecem intactas, mas o mesmo não aconteceu com outras instalações que ficaram destruídas ou danificadas, como as faculdade de Economia ou de Física e Tecnologia, ou ainda o complexo desportivo e o Instituto de Administração Pública.

“A guerra mudou tudo”, afirma Anatoliy Babichev sobre os primeiros instantes da agressão da Rússia, cuja fronteira fica a escassos 40 quilómetros de Kharkiv, recordando os tiros de ‘rockets’ junto dos edifícios da universidade e depois os bombardeamentos, num período em que as notícias de perdas de estudantes, professores e funcionários se acumulavam.

“Não sabíamos quem estava em Kharkiv, no país ou no estrangeiro, porque muitas pessoas perderam as suas casas e familiares. Todos os dias recebíamos notícias sobre a morte de alguém ou a destruição de um edifício”, descreve o vice-presidente desta universidade centenária, que conserva 17.500 alunos (20 mil antes da guerra) e que já produziu três laureados com o Prémio Nobel.

Mas ao longo do mês de março de 2022, os serviços da instituição universitária começaram a reagir e “a tentar perceber quem estava onde”, transformando a sua abordagem educativa e a introduzir métodos à distância. Mesmo assim, recorda, “muitos dos alunos estavam sob ocupação russa” e o seu destino era incerto, ou, pior ainda, acabava-se por descobrir que tinham sido mortos.

A excecionalidade trazida pela guerra tornou-se numa rotina e a maioria dos alunos começou a receber ensino ‘online’, os cientistas voltaram a trabalhar nos laboratórios e os estudantes que precisam de competências práticas, como Medicina, Biologia, Física e Química, regressaram às faculdades.

Ao mesmo tempo, aprofundavam-se parcerias com o exterior, na Alemanha, Reino Unido e até Portugal, com o envolvimento das universidades do Porto e do Minho, e intensificaram-se ‘hubs’ no estrangeiro, para onde partiram centenas de milhares de refugiados, ou em regiões menos inseguras, como um centro de Medicina em Ivano-Frankivsk, no oeste do país.

“Diria que algum desenvolvimento científico até aumentou, porque recebemos um grande número de novos parceiros internacionais”, sublinha Babichev, vincando a importância de os estudantes manterem o acesso à comunidade científica internacional.

No fundo, refere à Lusa Babichev, a Universidade de Kharkiv estava “a pôr em prática a experiência adquirida no período difícil da pandemia de covid-19 para fazer o mesmo nos tempos de guerra”.

Em simultâneo, os alunos são desafiados a frequentar as instalações da universidade, mesmo que muitos não tenham a oportunidade de estar em Kharkiv, ou se mantenha a prioridade de proteger a comunidade dos ataques aéreos russos, que continuam a castigar quase diariamente a cidade ucraniana.

Enquanto se incentivam atividades desportivas que promovem encontros presenciais, alunos de escolas da região são convidados a deslocarem-se à universidade em cada sábado e explorarem gratuitamente a ciência e praticarem atividades de conhecimento.

“Queremos transmitir a estas crianças o entusiasmo da ciência e torná-la mais popular, porque o futuro do nosso país depende muito dos cientistas”, comenta Anatoliy Babichev, devolvendo a centralidade de uma universidade que se confunde com a cidade e com a sua história, nos idos do império russo e depois soviético, e que, após a independência da Ucrânia, mantinha um bom intercâmbio e projetos científicos comuns com instituições do outro lado da fronteira.

Mas isso praticamente terminou com a crise no Donbass, no leste da Ucrânia, a partir de 2014, e a invasão há dois anos foi o golpe fatal, não havendo atualmente na universidade estudantes nem professores russos, até porque o conselho científico e a instituição publicaram um decreto a cancelar o estatuto que estes docentes possuíam anteriormente.

Até à guerra, a Universidade de Kharkiv era também a entidade de ensino superior da Ucrânia com mais estudantes estrangeiros, cerca de cinco mil, na maioria provenientes da Índia, Paquistão, países árabes, Gana e Nigéria — e uma grande parte de Medicina -, “mas pode-se imaginar que se perderam muitos deles”, estando em curso uma estratégia para voltar a atrair alunos no exterior, não só para licenciaturas e mestrados mas também para programas de curta duração.

Anatoliy Babichev desempenha também funções no Conselho Municipal de Kharkiv, lamentando que muitos residentes tenham sido forçados a partir da cidade (1,5 milhões de habitantes antes da guerra) desde que as forças russas invadiram o país e tentaram conquistá-la nos primeiros dias, chegando a ocupar parte do grande bairro periférico de Saltivka.

“Estes dois anos foram muito duros. Nos primeiros tempos, tínhamos os bombardeamentos aéreos e depois os alarmes, as pessoas não tinham sequer tempo para se deslocarem para os abrigos. Não havia gente nem carros nas ruas e tudo isso foi causa de grandes problemas psicológicos”, recorda.

Ao longo de 2023, muitos habitantes começaram a regressar. Porém, os bombardeamentos voltaram em grande escala no final do ano passado e a gerar um novo movimento de partidas, apesar dos esforços das autoridades locais para que “todos os serviços continuem a ser prestados e garantir que as pessoas possam prosseguir as suas vidas, o que não é fácil”, relata Anatoliy Babichev.

Hoje Kharkiv insiste em apresentar-se como uma cidade vibrante, na qual os habitantes tentam preservar o seu modo de vida entre muitas ruínas de edifícios atingidos por ‘drones’ (aparelhos aéreos não tripulados) e mísseis russos e a frequência dos toques de alarmes aéreos, mas também de numerosas lojas, bares e restaurantes reabertos em ruas iluminadas e decoradas com propaganda de guerra, que voltaram a ser percorridas por velhos elétricos vermelhos.

Anatoliy Babichev mantém a convicção de que a Ucrânia vai vencer esta guerra, mesmo tendo a consciência de que ela vai demorar. Mas o matemático de formação, com um doutoramento em Gestão Pública, não se atreve a calcular quando poderá terminar: “Talvez teoricamente isso seja possível. Na prática nem pensar.”

*** Henrique Botequilha (texto) e António Cotrim (fotos), enviados da agência Lusa ***

HB // SCA

By Impala News / Lusa

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