Pescador foi escravizado, torturado e vítima de maus-tratos durante 22 anos

O desespero levou-o a sair de casa adolescente e por mais de duas décadas foi escravizado e vítima de maus-tratos inacreditáveis. Em Portugal há 1400 escravos e em todo o Mundo perto de 36 milhões.

Myint Naing estava longe de sonhar que seria torturado e escravizado enquanto sobrevivia como podia numa aldeia pobre da Birmânia, com a sua família. Sem perspetivas de futuro e aliciado por um homem que apareceu com promessas de uma vida digna, aceitou partir, ainda adolescente. Foi tudo tão imediato que nem se despediu da mãe.

O que viria a seguir-se é uma crua realidade deste séc. XXI, principalmente em algumas zonas remotas do sudoeste asiático, onde indústrias piscatórias florescentes se aproveitam da pobreza desesperante de milhões de pessoas. Por mais de duas décadas, Myint foi vítima de escravatura e maus-tratos.

Era forçado a trabalhar noite e dia e se fazia uma pausa era espancado. Foi dos poucos a conseguiu fugir e a odisseia dessa sua fuga dava um filme com final feliz: regressou a casa 22 anos depois e caiu nos braços da mãe.

Promessa de um sonho fácil levou-o a ser escravizado

Em 1993, tinha visto a irmã e a mãe pela última vez. Partira da sua aldeia levado por um recrutador de trabalhadores para a Tailândia. Myint acreditou nas promessas de um ordenado com que pudessem ajudar a família e foi. Menos de um mês depois, estava no mar e pouco depois chegava à ilha de Tual, na Indonésia. Foi como desembarcar no Inferno.

Ele e outros homens foram informados de que dali em diante eram escravos. Ninguém ia querer saber deles, não os iriam procurar, e teriam de fazer tudo o que lhes fosse ordenado. Sem contestação. Myint passava semanas consecutivas no mar de Tual, onde a pesca era farta. O trabalho quase sem pausas prolongava-se dia e noite, incessantemente. Quando algum dos homens parava, era espancado. Trabalhavam. Trabalhavam saudáveis ou doentes.

O desespero era tanto que, de vez em quando, havia quem se atirava borda fora. Quando eram apanhados, sofriam castigos atrozes. Quando não eram, acabavam por normalmente morrerem afogados. Passaram três anos. Myint ganhou coragem e pediu para que o deixassem partir. Foi de tal forma espancado que lhe fraturaram o crânio. Depositou então toda a esperança na única saída possível: apesar de todos os riscos, tinha de fugir. Conseguiu.

Nova expectativa e novo Inferno

Nos cinco anos seguintes, acabou por viver acolhido por uma família de camponeses indonésia que teve pena dele. Fez vida no campo e, entre aquela vida e as saudades da sua aldeia, podia ter continuado lá, onde o acolheram por meia década. Myint optou pelo regresso a casa; a saudade corroía-o mais e mais, e não aguentou.

Outra vez aliciado, desta vez por um capitão que lhe ofereceu a viagem a troco de trabalho, acreditou que em breve estaria reunido com a mãe e a irmã. E aceitou a proposta. Todavia, o que se lhe apresentava como o sonho de voltara a abraçar a família, acabou por ser um novo Inferno, pior ainda do que o anterior. Acabou acorrentado no navio, e de novo obrigado a trabalhos forçados, de autêntica escravidão.

Um dia, porém, conseguiu abrir o cadeado e perante aquela única oportunidade de evasão, nem hesitou. Saltou borda fora e nadou até terra. Passou vários anos – não consegue precisar quantos – em ilhas. Sobreviveu de frutos colhidos de árvores e outros vegetais. Passou a primeira temporada sozinho, em total solidão. Mais tarde, juntou-se a uma colónia de outros escravos que, tal como ele, haviam fugido.

Nos braços da mãe

Perdera entretanto toda a esperança de um reencontro com as suas raízes até que, neste mês de abril, ouviu um amigo refugiado como ele, lhe contou que a Indonésia tinha montado uma missão de busca e repatriamento de homens na situação deles. Esta iniciativa das autoridades indonésias tinha sido impulsionada por uma extensa reportagem da Associated Press sobre escravatura. Myint apresentou-se.

Contou a sua história e foi repatriado para Tual, onde foi reunido a centenas de outros escravos birmaneses na condição dele. Era a luz ao fundo do túnel e preparou-se para a derradeira viagem.

Quando chegou à sua aldeia, 22 anos depois, viu uma mulher. Apesar de ela ter no rosto e no corpo as marcas de mais de duas décadas de pobreza – a mesma da que Myint tinha tentado escapar –, reconheceu-a de imediato. Era a irmã. Abraçaram-se. Depois, Myint viu a mãe. Caiu de joelhos, mas ela tomou-o e acariciou-o, como fizera quando ele ela o seu menino.

36 milhões de escravos no Mundo e 1400 em Portugal

O Índice Global da Escravatura aponta para que haja atualmente 35, 8 milhões de escravos no Planeta, uma subida de 20% em relação ao anterior relatório, relata a Walk Free Foundation, instituição que luta pela erradicação da escravatura. Ainda que seja a  região do Globo com o menor índice de escravatura (1,6%), a Europa continua a ter mais de meio milhão de escravos entre as suas fronteiras, a maioria usada laboral e sexualmente. Os dados da Walk Free Foundation indicam que em Portugal existem 1400 escravos.

 

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