Duas vezes melhor por metade do respeito: a batalha de Kamala Harris pela Casa Branca
A ascensão de Kamala Harris nesta semana foi recebida com enorme entusiasmo. O ‘hype’ reflete um desejo profundo de apoiar um rosto novo na luta contra Trump, mas será isto suficiente?
Os grandes grupos de comunicação social “estão surpreendentemente silenciados perante a perspetiva de a nação mais poderosa do mundo ser liderada pela primeira vez por uma mulher – especificamente uma mulher negra, a vice-presidente dos Estados Unidos da América Kamala Harris“, considera Clare Corbould, professora associada e líder do Grupo de Pesquisa em Histórias Contemporâneas da Universidade Deakin. “Usando as eleições passadas como guia, poderíamos esperar uma enxurrada de comentários sobre este momento potencialmente histórico. Por que não isto a acontecer?”
Poderíamos apontar “para a gravidade da eleição, enquanto Trump e os republicanos aumentam a sua retórica etnonacionalista“. Também poderíamos sinalizar “um desejo contínuo nos círculos dos media pela desunião no Partido Democrata”; cujas oportunidades “foram frustradas pela retirada tardia de Biden do processo de nomeação”, seguida de “um rápido endosso a Harris”.
Mas a melhor “e mais simples” explicação é tão somente que os meios tradicionais de comunicação social não levaram a candidatura de Kamala “suficientemente a sério”. “Pelo menos, nos primeiros dias da sua campanha”, diagnostica Clare Corbould. Aliás, para a professora de História Contemporânea razão é mais profunda. “Não levaram a própria Harris suficientemente a sério.”
Narrativas sobre a campanha de Harris em 2019 para a nomeação para liderar o Partido Democrata justificavam que “não era claro o que ela defendia”. “Ouvimos este julgamento repetido nos últimos dias, inclusive em artigos de opinião e podcasts dos media liberais.
Os críticos “deploram a vice-presidência de Kamala como noutro período, em que falhou em deixar a sua marca em qualquer questão em particular”. “E, no entanto e em simultâneo, eles notam o quão forte ela é em relação ao aborto.”
“E aí está o problema. A questão na qual Harris é ouro eleitoral – o direito de uma pessoa decidir sobre procedimentos médicos relativos à reprodução ou manifestação de género – e não apenas algo que os media tradicionais considerem genuinamente importante”, diz Corbould. “Muitos consideram a questão como de interesse minoritário, em vez de universal.”
Em vez disso, “chegam-nos inúmeros artigos de opinião sobre como Harris não é suficientemente qualificada para o papel, como se 30 e tantos anos no serviço público, incluindo dois mandatos como promotora distrital na Califórnia e dois como procuradora-geral do estado, quatro anos como senadora dos EUA e quatro como vice-presidente fossem insuficientes”. “E como se as credenciais do seu oponente não fossem tão dignas de escrutínio.”
No podcast Daily, do New York Times, o apresentador e um especialista em sondagens “preocuparam-se com o fato de Kamala Harris não ter experiência suficiente em campanha”, porque “muitas das suas eleições terem sido com base em eleitorados relativamente liberais”. “Não a viram eviscerar Mike Pence no debate de 2020?” – questiona a professora.
O foco intenso em quem serão os apoiantes de Harris nesta corrida “também revela a falta de seriedade com que muitos meios trataram a mulher que arrecadou um recorde de dezenas de milhões de dólares em financiamento de campanha nesta semana”.
Sexismo e racismo
Embora sejam “mais educado”, estas reportagens e opiniões “vêm da mesma fonte que as formas abertamente racistas e sexistas com que Harris é tratada pelos oponentes republicanos”. Trump chamou-lhe “burra”, enquanto dois representantes dos EUA consideraram-na “candidata DEI”, vinda “intelectualmente do fundo do poço” e defendendo que “quando se vem deste lugar só pode obter-se mediocridade”.
O primeiro comentário do candidato republicano à vice-presidência JD Vance, depois Biden endossar Harris, foi perguntar “o que fez ela além de receber um cheque do governo nos últimos 20 anos” e encostá-la à imagem das preguiçosas “rainhas negras do bem-estar social” – elementos básicos das campanhas conservadoras das décadas de 1970 a 1990.
JD Vance basically calls Harris a welfare queen: ““I did serve in the United States Marine Corps and build a business,” Mr. Vance said in Michigan. “What the hell have you done other than collect a check?”
Strap in. The GOP goes straight to the racism.
— Claire Potter (@TenuredRadical) July 22, 2024
Como devemos entender o desrespeito básico com que Harris é tratada? “Sem dúvida, tem semelhanças com comentários sobre candidatos anteriores que não eram homens brancos”, analisa Clare Corbould. “Hillary Clinton recebeu críticas intermináveis sobre os seus blazers e foi amplamente chamada de Hillary, tal como Harris está a ser chamada de Kamala. Barack Obama foi, como Harris, ridicularizado pela sua falta de experiência em governar.”
Para entender a forma como os meios de comunicação social tradicionais apresentaram Harris ao povo norte-americano, é também necessário “ter em conta a experiência específica das mulheres negras”.
Mulheres de cor nos EUA
Harris – cujos pais eram ambos migrantes para os Estados Unidos, da Índia e da Jamaica – “identifica-se tanto como uma mulher negra quanto como afro-americana”. A maioria dos norte-americanos perceciona-a “como afro-americana”.
A experiência de discriminação das mulheres afro-americanas “tem sobreposição significativa relativamente à das mulheres brancas e à de homens afro-americanos”, regista Corbould.
É isto que a teoria conhecida como “interseccionalidade” nos “encoraja a entender”. “Não podemos simplesmente ‘somar’ as experiências de discriminação de género e racismo para compreender a totalidade do desrespeito com que as mulheres de cor são tão frequentemente tratadas. Uma das melhores maneiras de entender esta distinção é através do título de um livro clássico de Estudos Negros dos anos 1980, All the Women Are White, All the Blacks Are Men, But Some of Us Are Brave – “Todas as Mulheres São Brancas, Todos os Negros São Homens, mas Alguns de Nós São Valentes”, em tradução direta.
“Felizmente para os democratas e para aqueles comprometidos em derrotar Donald Trump, a campanha de Harris disparou nesta semana, abordando de frente os desafios particulares que ela enfrenta como candidata presidencial, sendo uma mulher negra.” Em suma, “estão a inclinar-se para as mesmas coisas que a oposição tentou fazer com que fossem as suas fraquezas”.
I’m Kamala Harris, and I’m running for President of the United States. pic.twitter.com/6qAM32btjj
— Kamala Harris (@KamalaHarris) July 25, 2024
Desde segunda-feira, inundaram as redes sociais com ‘memes’, vídeos e links para alterar a narrativa que os grandes media ofereceram. Significa isto que “assistimos ao uso extensivo do primeiro nome da vice-presidente, Kamala, inclusive no primeiro anúncio de vídeo da campanha de Harris“.
Republicanos e outros “menosprezam Harris há muito por rir de mais”, com o intuito de “enquadrá-la com o estereótipo de uma mulher negra barulhenta e pouco séria”. “Imagens da sagacidade e alegria de Harris também têm o efeito de diminuir a oportunidade de ela ser pintada com outro estereótipo, o da ‘mulher negra raivosa’.”
Kamala has more of a chance than Hillary did because Hillary was the Mean Mom and Kamala is the Fun Mom, I wish this were not true but Americans are all babies until the day they die
— K. Thor Jensen 🐀🐀 (@kthorjensen) July 24, 2024
Enquanto JD Vance ridiculariza Harris como uma “senhora de gatos sem filhos”, as redes sociais desta semana passaram a estar repletas de mensagens “positivas e afirmativas do marido, da enteada e, de forma comovente, da ex-mulher do seu marido”. Sabendo que “as mulheres políticas são frequentemente criticadas por não terem o calor das mães idealizadas, os apoiantes estão a partilhar amplamente vídeos de Harris a cozinhar (inclusive do seu próprio canal do YouTube Cozinhando com Kamala) ou a dar instruções a um produtor de TV, pouco antes de ir ao ar, sobre como salgar um peru de Ação de Graças”.
Kerstin Emhoff, Doug Emhoff’s ex-wife, on Republican attacks on @KamalaHarris for not having children of her own. “These are baseless attacks. For over 10 years, since Cole and Ella were teenagers, Kamala has been a co-parent with Doug and I.” (1/2)
— Katie Rogers (@katierogers) July 24, 2024
A par de todo este material “focado em personagens”, a campanha foi também lançada diretamente em áreas políticas nas quais os democratas por vezes vacilam. “O discurso de campanha de Harris usa a palavra ‘aborto’, que, por si só, é quase uma novidade.” Kamala promete ainda “controlo na posse de armas” e “liberdades reprodutivas em geral, garantindo a disponibilidade de fertilização in vitro“.
Embora não tenha condenado a guerra em Gaza como genocídio, recusou-se a comparecer ao discurso do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu no Congresso. Desde então, “reiterou o seu apelo de março de 2024 por um cessar-fogo”, afirmando que “não ficará “em silêncio” sobre o sofrimento em Gaza.
Duas vezes melhor por metade do respeito
A força com que Harris fez estas declarações sobre questões que “muitas vezes dividem os políticos” também transmite “que ela é forte, autoritária e competente” – “todas as coisas que as afro-americanas têm de esforçar-se mais para provar do que, digamos, as brancas e, especialmente, é claro, os homens brancos”.
A ascensão de Harris nesta semana “foi recebida com enorme entusiasmo”. “O ‘hype’ reflete um desejo profundo de apoiar um rosto novo na luta contra Trump”, constata Clare Corbould. “Mas a alegria e a esperança também foram alimentadas pela forma inteligente como Kamala Harris e a sua equipa trabalharam contra, embora dentro das restrições específicas impostas a uma mulher afro-americana e sul-asiática norte-americana que sonha tornar-se presidente dos EUA.”
O fato de isto ter surpreendido tantas pessoas “revela, mais uma vez, que Harris teve de ser, no velho ditado que os pais de cor ensinam aos filhos, “duas vezes melhores” para receberem “metade do respeito”.
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