Afeganistão: “Usar a burca é como ser sepultada viva”
Passar a usar a burca foi “como se fosse sepultada viva”, relatou uma afegã de 19 anos à agência Lusa a propósito do primeiro aniversário da retoma do poder no país pelos talibãs.
Zahra (nome fictício) só conhecia, até há um ano, o Afeganistão que resultou da ocupação dos Estados Unidos e dos aliados ocidentais, em 2001. Vinte anos depois, em 15 de agosto de 2021, os talibãs reconquistaram o poder, prometendo, na altura, manter os direitos conquistados pelas mulheres, permitindo-lhes trabalhar, frequentar escolas e ter um papel nas decisões sobre o país. O regresso dos talibãs aconteceu na sequência da retirada das tropas norte-americanas e aliadas do solo afegão, depois de o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ter anunciado, em abril, o fim da guerra contra o terrorismo naquele país. Apesar de considerar que a situação em que cresceu “não era a ideal”, Zahra defendeu que a que resultou da saída dos ocidentais e do regresso ao poder dos talibãs “é muito, muito pior” e “chega para tirar a esperança” sobretudo às mulheres, raparigas e meninas.
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As restrições impostas às mulheres começaram logo e muitas tiveram de deixar de trabalhar, afastar-se de cargos públicos, deixar as escolas e, a partir de 06 de maio passado, usar uma burca sempre que estiverem em público. “Devem usar o ‘chadri’ [a burca] porque é tradicional e respeitoso”, impôs um decreto publicado pelo regime talibã, adiantando que a obrigação abrange todas “as mulheres que não são nem demasiado jovens nem demasiado velhas” e que estas “devem velar o seu rosto quando encontram um homem que não é membro da sua família” de forma a evitar provocações. A primeira vez que usou burca, Zahra sentiu “vergonha e só conseguiu olhar para o chão”, e considera que “é isso mesmo que é pretendido, que as mulheres se sintam inferiores”. A burca não era estranha a Zahra, claro, e costumava ver muitas mulheres com aquele manto preto ou azul e rede nos olhos, mesmo no tempo do Governo anterior. Mas nunca tinha usado e “tem medo de ter de a usar para sempre”.
A primeira vez que usou burca, Zahra sentiu “vergonha e só conseguiu olhar para o chão”
“É como se fosse sepultada viva”, garantiu, defendendo vivamente que tem a certeza de que Deus não quereria isso para ninguém. O medo é o sentimento mais presente na vida desta jovem afegã. Zahra contou que vive numa família só de mulheres, partilhando a vida com a sua mãe e a sua avó, que ainda se lembra de usar minissaia e passear sozinha com as amigas nas ruas de Cabul. Mas isso “foi antes”. Antes de os talibãs tomarem o poder, antes da imposição da ‘sharia’, o sistema jurídico do Islão tornado fundamentalista, e “antes de as mulheres serem consideradas pessoas de segunda categoria”, lamenta Zahra. “Agora, vivo com medo do futuro. Tive de abandonar a escola e temos muitas dificuldades financeiras”, afirmou, acrescentando que a mãe não a quer obrigar a casar, mas “um dia, talvez tenha de aceitar o destino”.
Como vive numa família só de mulheres, as dificuldades agravam-se quase todos os dias. Sair à rua é um processo complicado porque não tem em casa um ‘mahram’, um homem que a acompanhe e sirva de guardião aos olhos dos fundamentalistas. Embora confesse que a mãe às vezes arrisca, Zahra foi proibida de sair sem cumprir as regras. “Elas têm medo por mim”, explicou, referindo-se à mãe e à avó e admitindo que ela também tem. Por isso, quando é absolutamente necessário sair, pede ajuda a um tio ou um primo, mas normalmente deixa-se ficar no seu quarto ou costura algumas coisas para “ajudar nas despesas”. A contrastar com as histórias que a avó conta dos anos em que era nova, quando o Afeganistão era mais parecido com um qualquer país da Europa, Zahra nem sonha em usar minissaia. Foi educada na modéstia e sempre cobriu a cabeça. “Mesmo que vivesse noutro lado, acho que não seria capaz”. Mas conduzir um carro é um sonho que tem desde pequena. “Ir para o trabalho a conduzir o meu próprio carro e a cumprimentar as pessoas na rua”, descreve, referindo que reza todos os dias por esse momento. “É um sonho de liberdade”, concluiu.
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