Ataques em Moçambique: Quase cego, Estevão enfrentou o mato durante sete dias de fome
Quase cego, Estevão Antique, 73 anos, apoia-se numa bengala, a mesma com que fugiu de Palma, numa luta pela sobrevivência em que foi amparado por familiares após o ataque de grupos armados, há uma semana.
Quase cego, Estevão Antique, 73 anos, apoia-se numa bengala, a mesma com que fugiu de Palma, numa luta pela sobrevivência em que foi amparado por familiares após o ataque de grupos armados, há uma semana.
“Estava com a minha mulher e com esta criança [um neto], eles apanharam-me e fugimos para o mato”, em passo de corrida, diz Estevão, com um retrato sonoro nítido do que passou.
“Tiros, ouviram-se tiros e toda a gente a correr”, num bater de terra que depois passou a estalido de mato, sob os pés, de chinelos ou descalços, sempre em passo de corrida, numa fuga que parecia não ter fim.
Estêvão conta que “foram sete dias sem dormir e sem comer nada” até chegar, na última noite, a Pemba, num voo humanitário.
“Houve fome, sim”, mas “Deus é Deus”, realça, para justificar como ele e tantos outros se aguentaram, nomeadamente “muitas, muitas crianças”.
“Nós deixámos as nossas em Afungi”, sob cuidado de um próximo voo humanitário, mas “outras pessoas não sabem para onde foram as crianças”, refere.
“Ficou lá muita gente ainda, muita mesmo, crianças e senhoras”
O relato de crianças perdidas repete-se nas declarações dos deslocados, um denominador comum a um retrato caótico de fuga e sobrevivência.
“Lá, quando fugimos, não se sabe quem morreu”, acrescenta Estevão.
Em Afungi, junto ao projeto de gás, ainda há “muitas pessoas” para recolher, refere, ao lado do neto, Ali Saide, 15 anos, sentados em frente ao aeroporto de Pemba, à espera que o resto da família chegue no próximo voo humanitário.
“Tens muitas crianças no mato, que não comeram”, refere Ali no melhor português que consegue.
“Aqui não temos família, não sei [para onde vamos]”, acrescenta o aluno do terceiro ano do ensino básico em Palma, acrescentando que era “o número quatro” na turma agora desfeita e que “os professores também estão em Afungi”, à espera de um resgate.
Outro deslocado, Jorge Chande, não larga o telefone para saber a que horas chega o voo humanitário com o resto da família. Fraco, diz que carregou uma malária mal curada durante toda a fuga.
“Ficou lá muita gente ainda, muita mesmo, crianças e senhoras”, sublinha.
Muassite Miguel, coordenadora de campo da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC), lidera um grupo à porta do aeroporto que entrega ‘kits’ de dignidade às mulheres em idade fértil.
Itens de higiene, como pensos higiénicos laváveis e até um apito para situações de emergência, são entregues ao lado de outras organizações humanitárias que também apoiam com comida e prestam ajuda médica.
“Houve um parto no percurso da fuga”, refere, recordando a história de uma das deslocadas recebidas em Pemba.
Sintetiza os relatos numa expressão: “É um milagre” como mães sobreviveram com bebés ao colo durante a fuga.
Os sobreviventes aos ataques terroristas de há uma semana enfrentam um futuro incerto.
Jorge Chande conta voltar a Palma, “um dia, quando isto acabar”, “Quando? Não se sabe”, diz, e isso deixa um vazio na sua vida que não sabe como preencher: “Não sei para onde ir. Tenho família [em Pemba], mas também não tem condições. Não tem dinheiro, nem comida”, conclui, enquanto espera apoio humanitário.
Para já, o que lhe arranca uma gargalhada – assim como a Ali e Estevão – é perguntar se dormiram bem depois de chegarem a Pemba: “Sim, sim, sem tiros”.
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