Cabral preocupava-se em ter democratas autênticos, “coisa que não existe mais”
Amílcar Cabral, líder das independências guineense e cabo-verdiana, preocupava-se em ter democratas autênticos, “coisa que não existe mais”, referiu o ex-combatente João Pereira Silva, ao recordar a figura histórica no ano do seu centenário.
Aos 79 anos, o também ex-governante cabo-verdiano, natural na ilha da Boa Vista, onde hoje reside, considerou que o ponto mais importante ao discutir os modelos de democracia de Cabral é que ele se preocupava em definir “as qualidades de um democrata”.
Referia que “democracia é não mentir ao povo, é ser honesto, é trabalhar incansavelmente” pela população, ou seja, “ele referia-se às características de um democrata autêntico, coisa que atualmente não existe”, descreveu.
Mesmo nas democracias de estilo ocidental, hoje, “trabalha-se para não sair dos cargos” e, “em muitos casos, os cargos servem para enriquecer e não para resolver os problemas do povo”, disse, ao estabelecer o contraste com o perfil de democrata alinhado com o povo, definido por Cabral.
João Pereira Silva viveu pouco mais de um ano em Conacri, entre 1970 e 1972, onde era professor na escola-piloto do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
Era mais novo que a geração de Cabral, mas partilhou alguns momentos com o dirigente, o suficiente para recordar preocupações que carregava.
Num outro momento juntos, “falando sobre o regime soviético”, Amílcar Cabral “teve essa saída: se depois do fim da luta tivesse a certeza de que o imperialismo nos deixasse seguir um caminho sem interferências, ele preferiria a social-democracia sueca”.
“Isso não está escrito. Lembro-me perfeitamente, nunca me esqueci dessa frase dele, porque está associada a um filme”, contou.
O comentário surgiu depois de ambos assistirem à projeção de uma longa-metragem soviética sobre o confronto com a Alemanha nazi, na Segunda Guerra Mundial, e que retratava o papel do “general de Estaline”, Gueorgui Júkov.
“Ele não tinha soluções acabadas”, mas procurava-as.
A União Soviética (URSS) e a Suécia tinham em comum o apoio à luta anticolonial em África e a proximidade a Amílcar Cabral, que recebia armas e apoio à formação militar da URSS e ajuda não-militar escandinava.
Numa altura em que o mundo seguia uma lógica de guerra fria entre dois blocos, a figura histórica procurava afirmar a autodeterminação africana de forma independente, tendo o cuidado de promover a causa e os valores do PAIGC junto de ambos os blocos.
Noutro momento, numa reunião com estudantes nos Estados Unidos, Amílcar defendeu que “era perigoso [um país] depender só de um partido. Tinha de se arranjar forma de garantir que o povo tomasse conta, de facto, do poder”.
Mas as independências acabariam por viver os primeiros anos sob regimes de partido único, o PAIGC, tanto em Cabo Verde (até 1992) como na Guiné-Bissau (1993).
Em Conacri, João Pereira Silva recorda-se de Amílcar num encontro de orientação vocacional, num final de ano letivo da escola-piloto, ao ajudar a encaminhar os finalistas para ensino especializado – entre os alunos do ex-combatente, um acabou por ser arquiteto, outro cineasta.
“Preocupava-se muito com o que fazer depois [da luta pela independência], com a preparação do futuro, por isso dava atenção especial à educação das crianças no interior, dos quadros na luta armada, mas também em formar engenheiros, médicos e até músicos”, recordou
“Acho que sabia da consideração que tinham por ele, por exemplo, os novos presidentes das repúblicas que surgiam” com as independências africanas, “mas não se vangloriava com isso”, contou João Pereira Silva.
Vestia fato e gravata “só para ir à Europa, a algumas conferências. Lá, em Conacri, ele vestia camisas, algumas já muito usadas”, mas sem ensombrar a aura cativante de Cabral, “um conquistador de pessoas, gentil com quem lidava”, recordou.
Amílcar Cabral viajava com frequência para o exterior, mas quando estava em Conacri, era presença assídua na escola-piloto.
“Todos os dias, cedo, visitava os alunos”, e, numa dessas manhãs, reparou que o professor João Pereira Silva tinha perdido o relógio de pulso.
“Na visita seguinte apareceu com uma caixinha na mão e tinha um relógio lá dentro. Era uma pessoa generosa e que observava os detalhes”.
“Violento? Não”, diz o ex-combatente, por entre gargalhadas, reiterando que a opção pela luta armada foi “o último recurso, face à obstinação do poder colonial [português] em não discutir a transformação política” das colónias.
No seu entender, foi devido ao caráter não violento que Cabral “foi assassinado nas circunstâncias em que foi”, a 20 de janeiro de 1973, em Conacri.
“Um homem que tinha feito um discurso de fim de ano, descrevendo planos das forças coloniais para acabar com a luta [pela independência], inclusive liquidando-o”, circulava, ainda assim, sem escolta.
Nesse dia, João Pereira Silva já estava longe, a completar instrução militar na União Soviética.
Formado em agronomia, como o líder histórico, o ex-combatente cabo-verdiano viria depois a desempenhar as funções de ministro de Desenvolvimento Rural e Pescas de Cabo Verde (1977 até 1991) e durante os últimos seis meses da primeira República foi ministro de Administração Interna, em acumulação.
Amílcar Cabral celebraria 100 anos a 12 de setembro de 2024, decorrendo atividades em diferentes países para assinalar a efeméride.
Em Cabo Verde, várias comemorações estão associadas à Fundação Amílcar Cabral e incluem um colóquio internacional sobre o líder histórico, a realizar em setembro, como ponto alto do programa.
*** Serviços áudio e vídeo disponíveis em www.lusa.pt ***
*** Luís Fonseca (texto) e Ricardino Pedro (vídeo), da agência Lusa ***
LFO // MLL
By Impala News / Lusa
Siga a Impala no Instagram