O plano maquiavélico de Putin para invadir a Ucrânia
Vladimir Putin preparou durante anos a invasão à Ucrânia. Usou intermediários para uma guerra por procuração e esteve na sombra de ataques sob bandeira falsa para justificar a intervenção bélica.
Nas primeiras horas de 24 de fevereiro, a Rússia atacou a Ucrânia. A ofensiva deu-se através de maciços ataques aéreos nas regiões orientais do país. Numa questão de horas, várias outras cidades, incluindo Kiev, eram alvo da ofensiva bélica. O presidente russo, Vladimir Putin, ameaçou consequências catastróficas caso algum ator estrangeiro interferisse nessa “operação militar especial“, aumentando ainda mais o espectro da guerra.
Volodymyr Zelenskiy, presidente da Ucrânia, prometeu resistir à invasão. Simultaneamente, vários líderes ocidentais condenaram o ataque e emitiram um novo conjunto de sanções contra Moscovo. Depois de dois meses de tensões crescentes, a guerra voltou ao continente europeu, com consequências possivelmente terríveis. A questão é: por que está a acontecer agora esta escalada?
Vladimir Rauta, professor de Política e Relações Internacionais de Reading, e Giuseppe Spatafora, especialista em Relações Internacionais de Oxford, debruçaram-se sobre a pergunta. Ouvindo estes especialistas, a conclusão é a de que Putin não só pensou há muito a invasão à Ucrânia como iniciou efetivamente a guerra há anos. Como? Usou terceiros para iniciar uma guerra por procuração – isto é: um conflito armado em que dois países utilizam terceiros (os procuradores) como intermediários (ou mesmo substitutos) de forma a não lutarem entre si.
Os serviços secretos ocidentais alertavam há muito que uma invasão russa era iminente. Mas o que permitiu a escalada da Rússia já lá estava: a possibilidade do reacendimento de novos combates entre separatistas pró-Rússia e o governo de Kiev – na verdade, uma guerra por procuração entre ucranianos e russos, que usaram os separatistas como intermediários no terreno para a guerra por procuração.
A crise atual decorre da guerra civil que eclodiu na primavera de 2014. Após os protestos do Euromaidan, duas regiões de língua russa (Donetsk e Luhansk, conhecidas coletivamente como Donbas) rebelaram-se contra o governo central de Kiev. A Rússia apoiou as regiões separatistas depois de ocupar e anexar a península da Crimeia. No ano seguinte, Rússia e Ucrânia assinavam o acordo Minsk II, em 2015, permitindo a reintegração gradual de Donbas na Ucrânia com ampla autonomia. Desde então, as duas autoproclamadas repúblicas não desistiram da luta para se separarem totalmente de Kiev.
O incendiar das tensões
Nos últimos dois meses, as relações entre Moscovo, Kiev e o Ocidente tornaram-se cada vez mais tensas. No entanto, a linha de frente em Donbas permaneceu em grande parte silenciosa. Na verdade, os fatos mostram até que os combates no leste da Ucrânia diminuíram, desde 2020. As discussões sobre a acumulação de tropas russas ao longo da fronteira da Ucrânia concentraram-se essencialmente na contenda da Rússia com o Ocidente e na questão da potencial adesão da Ucrânia à NATO, em oposição ao status das repúblicas separatistas. Em suma, a dimensão da contenda internacional ofuscou quase por completo a guerra por procuração que Putin montou, usando Donetsk e Luhansk como intermediários.
Tudo mudou no entanto em 17 de fevereiro, quando os líderes rebeldes em Donbas afirmaram estar sujeitos a fogo de artilharia das forças do governo ucraniano. No dia seguinte, iniciaram a evacuação das populações de etnia russa das áreas em que alegaram ter sofrido ataques aéreos. Evidências posteriores, porém, mostraram que este foi, na verdade, um ataque sob bandeira falsa, um logro propositadamente orquestrado para aumentar as tensões em Donbas, pensado e executado por Putin, na sombra, tal como a falsa contenda sobre a adesão ucraniana à NATO; a cortina de fumo russa para desviar as atenções do ato provocatório da guerra por procuração em Donbas.
Considerando que as forças armadas de Kiev adotaram uma postura não provocatória sobre a crise, é extremamente improvável que o exército ucraniano tenha tomado quaisquer medidas para recuperar Donbas neste momento – afinal, porquê esperar oito anos e atacar quando no momento em que cerca de 200 mil soldados russos os cercavam?
Ataque sob bandeira falsa
Em retrospetiva, pode argumentar-se que as autoridades russas usaram o ataque para justificar o reconhecimento da independência das regiões de Donbas e a subsequente invasão. Como qualquer procurador, os líderes rebeldes viram uma oportunidade na sua busca pela independência da Ucrânia. Uma escalada do conflito internacional entre Moscovo e Kiev acabaria por beneficiá-los na sua causa. A Rússia aproveitou a oportunidade e negou o seu envolvimento na encenação do ataque – principalmente devido à forma aleatória em que foi conduzido.
Independentemente de quem causou o ataque de bandeira falsa, os novos desenvolvimentos marcaram um ponto de viragem. Antes da escalada, a diplomacia coerciva da Rússia estava num impasse, fazendo extensas reivindicações à NATO sem garantir uma desescalada da sua presença militar na fronteira com a Ucrânia. As incessantes advertências do Ocidente de que a Rússia estava simplesmente a construir uma desculpa para invadir reduziram substancialmente a legitimidade das imposições do Kremlin. Por outro lado, a opinião pública russa era esmagadoramente contra a guerra, tornando as ações sérias da Rússia menos credíveis.
Nesse contexto, o episódio da bandeira falsa na Ucrânia permitiu a Putin atingir três objetivos: ter uma razão justificável para usar a força militar, ‘vender’ a operação internamente e mostrar ao Ocidente que a sua ameaça de ação militar era séria. Rapidamente, a Rússia passou a reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk, o que justificaria uma intervenção em defesa de uma nação estrangeira sob ataque militar. A máquina de propaganda da Rússia contra a Ucrânia, que permaneceu em silêncio até à semana passada, também foi acionada, e o deslocamento de russos étnicos permitiu ao Conselho de Segurança Nacional acusar a Ucrânia de “genocídio”.
Num discurso televisivo, Putin desafiou a reivindicação da Ucrânia a Donbas e afirmando que a Ucrânia é um país sem história governado por um regime corrupto apoiado pelo Ocidente. Esta linguagem agressiva parecia destinada a reunir apoio interno para a ação em território ucraniano, tal como antes da anexação da Crimeia. Finalmente, Putin enviou forças russas para Donbas com “funções de manutenção da paz”, antes de, finalmente, declarar um ataque às forças ucranianas.
A escalada dos combates na linha de frente de Donbass foi um instrumento essencial para a Rússia aumentar as tensões para o nível seguinte, fomentando a pior crise nas relações leste-oeste desde a guerra fria. Sem esse desenvolvimento na guerra por procuração, Putin teria tido muito mais dificuldades para justificar a invasão à Ucrânia. As consequências desta escalada podem ser enormes, desde a mudança de regime até a uma nova guerra entre as super potências. Independentemente do resultado, pelo menos uma coisa é certa: a agressão militar russa contra a Ucrânia alterará significativamente a segurança na Europa. E o primeiro sinal dessa alteração aí está: pela primeira vez na História, a União Europeia acaba de fornecer 450 milhões de euros à Ucrânia para compra de armamento.
Luís Martins
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