Deus proíbe votos em Trump na Pensilvânia
Com pacatas vendas de abóboras, leite e outros produtos à beira de estrada, o condado de Lancaster, na Pensilvânia, parece alheio às estridentes eleições presidenciais norte-americanas, mas as suas colinas suaves escondem uma luta pelos votos do povo Amish.
Por motivos religiosos, a vasta maioria dos Amish não vota e nem sequer está recenseada. Apesar disso, o Partido Republicano de Donald Trump lançou uma intensa campanha para captar os seus 100 mil votos, suficientes para ter vencido as últimas eleições na Pensilvânia, o estado mais valioso de todos os ‘swing states’ (19 votos do colégio eleitoral). Nas eleições de 2020, Trump perdeu aqui para Joe Biden por 80 mil votos.
À porta de um armazém de roupas e mobílias antiquadas, David e um amigo, ambos Amish, estão sentados à sombra em cadeiras de baloiço. Enquanto isso, as mulheres fazem compras no interior. David hesita em falar sobre as suas intenções de voto nestas eleições. O amigo ignora a abordagem e mantém-se em silêncio e de olhos no chão.
“Votar é um pouco contra a nossa religião. Não sei como explicar”, afirma o homem de meia idade, de barba comprida com bigode rapado, usando o chapéu de palha tradicional deste povo que vive em larga medida como os seus antepassados que chegaram aos Estados Unidos da América, no século XVIII. Fugiram de perseguições religiosas na Europa, vivem ainda hoje da agricultura e muitos deslocam-se ainda em charretes puxadas a cavalo, de bicicleta ou a pé.
David afirma que não vai votar e indica que não foi abordado por angariadores de voto de qualquer dos partidos. O amigo mantém-se em silêncio até ao final da conversa. No interior do armazém, Samuel diz que irá votar, mas não revela em quem. Diversos outros homens Amish ignoram abordagens.
Não muito longe dali, um enorme cartaz evidencia o esforço em curso, e cujos resultados serão visíveis na noite de 5 de novembro. Lê-se “Rezai pela piedade de Deus pela nossa nação” e, por baixo, “Ligue para receber um formulário de recenseamento e pedido de voto por correspondência”, ao lado de um número de telefone.
Ilustrado com um chapéu de palha tipicamente Amish, o anúncio indica, de acordo com as leis eleitorais locais, quem o financiou. Trata-se de uma organização chamada “Fer Die Amische” (“Pelos Amish”, em dialeto local), que tem como único contacto um endereço de e-mail.
Steven M. Nolt, um dos maiores especialistas em estudos Amish nos Estados Unidos, confirma que é o Partido Republicano no Condado de Lancaster que “tem estado ativo em tentar fazer com que os Amish locais se registem e votem”.
O esforço vem de eleições anteriores, pelo menos de 2004, mas tem vindo a intensificar-se, sublinha o professor de História e Estudos Anabatistas e diretor do Young Center no Elizabethtown College.
A Pensilvânia é um estado especialmente competitivo no panorama eleitoral, sendo considerado um ‘swing state’ (‘estado pendular’ ou ‘estado campo de batalha’), por tradicionalmente oscilar entre democratas e republicanos.
Condados rurais como Lancaster são solidamente republicanos, mas nas cidades mais populosas, como Philadelphia (leste) ou Pittsburgh (oeste) é o Partido Democrata que habitualmente ganha, tornando grupos como os Amish os potenciais desbloqueadores do resultado.
Estudos do Young Center identificaram que, durante a década de 1990 e o início dos anos 2000, votaram apenas entre 5 e 8% dos eleitores Amish elegíveis no condado de Lancaster. Em 2004, essa percentagem saltou para cerca de 13%, mas em 2016, primeira eleição de Donald Trump, voltaram a cair para 7%.
O aumento em 2004 refletiu o apelo do ex-presidente republicano George W. Bush e até um esforço de base de um agente republicano local para registar eleitores Amish, afirma Nolt. É esse resultado, ou mesmo acima dele, que a equipa de Trump pretende alcançar neste ano.
Em 2016, 90% dos Amish registados para votar em Lancaster eram republicanos, 9% independentes e 1% eram democratas. Desde a década de 1860, os eleitores Amish parecem sempre ter estado alinhados com o Partido Republicano.
A teologia dos “dois reinos” dos Amish, de separatismo teológico, motiva-os a não votar. Os que se tornam politicamente ativos, apoiam candidatos que representam um governo mínimo, não-regulação, não-interferência do estado na vida quotidiana. “E no ambiente político de hoje, isso tende a estar ligado aos republicanos”, afirma Nolt.
Mais polémica, adianta, é a figura de Trump, cujo estilo de vida luxuoso em Nova Iorque ou na Florida não poderia ser mais diferente do deles. Os múltiplos divórcios do ex-presidente, a sua linguagem vulgar ou a sua ligação a casinos, são diametralmente opostos ao que defendem, mas o mesmo é verdade para políticos em geral.
“Ouvi comentários casuais de pessoas Amish, tanto aqueles que gostam de Trump quanto aqueles que desaprovam a sua linguagem e envolvimento com jogos de azar. A minha impressão é a de que os Amish que gostam de Trump respeitam a sua experiência como empresário e o veem como um insurgente, que não é político. Aqueles que não aprovam as suas ações não costumam criticá-lo publicamente devido ao ensinamento Amish de ser respeitoso para com o governo”, disse o historiador.
Os escritos da Igreja Amish enfatizam que os cristãos devem orar pelos governantes e ser respeitosos ao interagir com eles. Devem obedecer a todas as leis que não atentem contra a consciência cristã e pagar todos os impostos.
“Como diz uma publicação Amish, ‘Se não queremos que o governo nos diga como conduzir os assuntos da nossa igreja, é melhor não lhes dizermos como administrar o governo'”, adianta Nolan.
Saindo do território Amish, as vendas de abóboras e as charretes a cavalo vão dando lugar a carrinhas ‘pick-up’ potentes e muitos cartazes de Donald Trump – alguns profundamente desrespeitosos para os democratas e a sua candidata presidencial, Kamala Harris.
Estes “dois reinos” cruzam-se nalguns negócios, como um pronto-a-comer e padaria com produtos preparados por jovens mulheres Amish. Recebem com simpatia, mas ao verem uma câmara fotográfica pedem que não se lhes tire retratos. Questionada se vai votar nas próximas eleições, uma delas revela que sim, timidamente, mas abrevia a conversa e volta ao trabalho.
Texto: Paulo Dias Figueiredo;
Foto: Nuno Veiga/Agência Lusa
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