Afinal qual é a diferença entre raça e etnia?

Raça e etnia são termos usados por vezes ​​de forma errada, quase como sinónimos. Mas raça e etnia não são de facto a mesma coisa.

Afinal qual é a diferença entre raça e etnia?

Raça e etnia são termos usados ​​para descrever a identidade humana, mas de maneiras diferentes – ainda que relacionadas. A identidade pode trazer à mente questões de cor da pele, nacionalidade, idioma, religião, tradições culturais ou ascendência familiar. Tanto a raça como a etnia abrangem muitos destes fatores.

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“Raça e etnia foram e continuam a ser usadas como formas de descrever a diversidade humana”, diz Nina Jablonski, antropóloga e paleobióloga da Universidade Estadual da Pensilvânia citada pela revista científica The Science, célebre pela investigação sobre a evolução da cor da pele humana. “A raça é percecionada pela maioria das pessoas como uma mistura de atributos físicos, comportamentais e culturais. A etnia reconhece as diferenças entre as pessoas, principalmente com base na linguagem e na cultura partilhada.”

Por outras palavras, a raça é muitas vezes interpretada como algo inerente à nossa biologia e, por esse motivo, herdada por gerações. A etnia, por outro lado, é normalmente percecionada como algo que adquirimos ou atribuímos com base em fatores como onde vivemos ou a cultura que partilhamos com outras pessoas.

Assim que – no entanto – aprofundarmos estas categorizações, os próprios alicerces sobre os quais foram construídas desmoronam. Isto porque a questão de raça versus etnia expõe na verdade falhas importantes e persistentes na forma como definimos estas duas características. Falhas que – particularmente quando se trata de raça – lhes conferiram um impacto social enormíssimo na história humana.

O que é a raça

A ideia de raça originou-se a partir de afirmações tanto de antropólogos como de filósofos do século XVIII, que usaram a localização geográfica e características morfológicas como a cor da pele para dividir as pessoas em diferentes agrupamentos raciais, como se explica na Britannica. Isto não só consolidou a noção de que existem tipos raciais separados, como alimentou também a ideia de que estas diferenças tinham base biológica.

Este princípio errado lançou as bases para a crença de que algumas raças eram superiores a outras – que os europeus brancos usaram para justificar o comércio de escravos e o colonialismo, consolidando os desequilíbrios de poder global, conforme assinala o professor emérito da Universidade da Cidade do Cabo Tim Crowe, no The Conversation.

“Não podemos entender raça e racismo fora do contexto da história. Mais importante, aliás, da economia. Porque o motor do comércio triangular [que incluía a escravidão] era o capitalismo e a acumulação de riqueza”, diz Jayne O. Ifekwunigwe, antropóloga médica do Centro de Genómica, Raça, Identidade, Diferença (GRID) do Social Science Research Institute (SSRI), Duke University. Jayne é igualmente diretora associada no Center on Truth, Racial Healing & Transformation (TRHT), da Duke. O centro faz parte de um movimento nos Estados Unidos da América cujos membros lideram eventos e discussões com o público para desafiar o racismo histórico e atual.

Os efeitos deste enredo prevalecem atualmente – mesmo nas definições atuais de raça, onde ainda há uma suposição subjacente de que características como cor da pele ou textura do cabelo têm bases biológicas e genéticas completamente únicas para diferentes grupos raciais, de acordo com Stanford. Todavia, a base científica para esta premissa pura e simplesmente não existe.

“Se pegarmos num grupo de mil pessoas das raças de pessoas modernas, encontraremos muitas variações dentro de cada grupo”, assinala Jablonski à Live Science. Mas, explica, “a quantidade de variação genética dentro de qualquer um destes grupos é maior do que a diferença média entre quaisquer dois grupos” raciais. Além disso, acrescenta, “não há genes que únicos para qualquer raça em particular”.

Ou seja, se compararmos os genomas de pessoas de diferentes partes do mundo, não há variantes genéticas que ocorram em todos os membros de um grupo racial. Esta conclusão foi alcançada em muitos e diferentes estudos. Europeus e asiáticos, por exemplo, partilham quase o mesmo conjunto de variações genéticas. Como Jablonski já descreveu, os agrupamentos raciais que inventamos são, na verdade, geneticamente mais semelhantes entre eles do que propriamente diferentes. O que, pode concluir-se, não há forma de separar definitivamente as pessoas em raças de acordo com a sua biologia.

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O próprio trabalho de Jablonski sobre a cor da pele, publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences em 2010, demonstra-o. “A nossa investigação revelou que cores de pele iguais ou semelhantes – claras e escuras – evoluíram várias vezes sob condições semelhantes ao longo da história”, diz. “Uma classificação de pessoas com base na cor da pele produziria um agrupamento interessante de pessoas com base na exposição dos seus ancestrais a níveis semelhantes de radiação solar. Seria um absurdo.”

O que a investigadora quer dizer é que, como ferramenta para colocar as pessoas em categorias raciais distintas, a cor da pele – que evoluiu ao longo de um vasto espectro – abrange tanta variação dentro de diferentes “agrupamentos” de cor da pele que é basicamente inútil, explicou Jablonski durante uma palestra TED em 2009.

Identificamos corriqueiramente a raça uns dos outros como “negros”, “brancos” ou “asiáticos”, com base em pistas visuais. Mas estes são, na verdade, valores que os humanos resolveram atribuir uns aos outros ou a si próprios. O problema ocorre quando combinamos este hábito social com a verdade científica – porque não há nada nos genomas dos indivíduos que possa ser usado para separá-los em linhas raciais claras.

Resumindo, variações na aparência humana não equivalem a diferenças genéticas. “As raças foram criadas por naturalistas e filósofos do século XVIII. Não são grupos que ocorrem naturalmente”, enfatiza Jablonski.

O que é a etnia

Isto expõe também a principal distinção entre raça e etnia – enquanto a raça é atribuída a indivíduos com base em características físicas, a etnia é mais frequentemente escolhida pelo indivíduo. E, porque abrange tudo – desde a língua e a nacionalidade à cultura e à religião – pode permitir que as pessoas assumam várias identidades. Alguém pode escolher identificar-se como asiático-americano, somali britânico ou judeu ashkenazi, por exemplo, com base em diferentes aspetos da sua identidade racial, cultura, ancestralidade e religião atribuídas.

A etnia tem sido usada para oprimir diferentes grupos, como ocorreu durante o Holocausto, ou no conflito interétnico do genocídio de Ruanda, onde a etnia foi usada para justificar homicídios em massa. Porém, a etnia também pode ser um benefício para as pessoas que se sentem isoladas num grupo racial ou outro, porque oferece um grau de identidade, diz Ifekwunigwe. “É aqui que a questão da etnia se torna realmente interessante, porque dá às pessoas acesso à multiplicidade”, diz. Assim, estas identidades múltiplas também podem ser difíceis de reivindicar, como no caso da multirracialidade, que muitas vezes não é oficialmente reconhecida.

Raça e etnia também estão irrevogavelmente interligadas – não apenas porque a raça atribuída a alguém pode fazer parte da sua etnia escolhida, mas também por outros fatores sociais. “Se tivermos uma posição minoritária [na sociedade], na maioria das vezes, somos ‘racializados’ antes de termos acesso à nossa identidade étnica”, constata Ifekwunigwe.

“É o que acontece quando muitos imigrantes africanos vão para os Estados Unidos e, de repente, percebem que, enquanto nos seus países de origem eram senegaleses, quenianos ou nigerianos, vão para os EUA e passam a ser negros.” Mesmo com uma etnia escolhida, “a raça está sempre à espreita”, diz.

Estes tipos de problemas explicam por que há um esforço crescente para reconhecer a raça, tanto quanto a etnia, como uma construção cultural e social, de acordo com o Projeto RACE. No entanto, na realidade, não disto é assim tão linear.

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Raça e etnia podem ser conceitos amplamente abstratos, mas isso não anula a sua influência genuína na vida real. Estas construções exercem “um imenso poder em termos de como as sociedades funcionam”, diz Ifekwunigwe. Definir pessoas por raça, especialmente, está arraigado na forma como as sociedades são estruturadas, como funcionam e como entendem os seus cidadãos. Por exemplo, o U.S. Census Bureau reconhece oficialmente cinco grupos raciais.

O legado das categorias raciais também moldou a sociedade de formas que resultaram em realidades socioeconómicas muito diferentes para grupos diferentes. Isto reflete-se, por exemplo, em níveis mais altos de pobreza para grupos minoritários, menor acesso à educação e assistência médica e maior exposição ao crime, injustiças ambientais e outros males sociais. Além do mais, a raça ainda é usada por alguns como a motivação para a discriminação contínua contra outros grupos considerados inferiores, explica-se no Southern Poverty Law Center.

“Não construímos apenas estas categorias raciais. Construímos estas categorias hierarquicamente”, diz Ifekwunigwe. “Entender que a raça é uma construção social é apenas o começo. Continua a determinar o acesso das pessoas a oportunidades, privilégios e, em muitos casos, meios de subsistência.” Basta “olharmos para os resultados de saúde”, diz.

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Um exemplo tangível de disparidade de saúde vem dos Estados Unidos da América, onde os dados mostram que as mulheres afro-americanas têm duas vezes mais chances de morrer no parto do que as mulheres brancas, de acordo com o já citado Census Bureau.

As perceções de raça informam até a forma como construímos as nossas próprias identidades – embora isto nem sempre seja negativo. Um senso de identidade racial em grupos minoritários pode promover orgulho, apoio mútuo e esclarecimento. Também politicamente, usar a raça para medir os níveis de desigualdade numa população pode ser informativo, ajudando a determinar que grupos precisam de mais apoio, devido à situação socioeconómica em que se encontram. Como se explica no site do U.S. Census Bureau, ter dados sobre a raça autodeclarada pelas pessoas “é fundamental na tomada de decisões políticas, principalmente para os direitos civis”.

Tudo isto resulta num quadro complexo, que pode levar-nos a refletir sobre como devemos ver a ideia de raça e etnia. Não há respostas fáceis, mas uma coisa parece certa: embora ambos sejam retratados como formas de entender a diversidade humana, na realidade também exercem o poder como agentes de divisão que não refletem nenhuma verdade científica.

A ciência mostra-nos que, em todas as categorias que os humanos constroem para si próprios, partilhamos mais coisas do que distintas. O verdadeiro desafio para o futuro será ver isso, em vez de apenas as nossas diferenças.

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