Artigo da Wired explica como dever-se-ia contestar atual política de vacinação contra a covid-19, segundo a qual os idosos e os mais vulneráveis serão os primeiros a receber as vacina, depois de inoculados os profissionais de Saúde e da Segurança. A reportagem inicia-se com a história de um social butterfly – borboleta social, em Português – termo usado para descrever os supercontagiadores.

A identidade deste supercontagiador nunca é revelada, mas trata-se de um advogado socialmente muito ativo. Ele foi uma das aproximadamente 750 mil pessoas que passaram pelo Terminal Grand Central naquele dia. Trabalhava como advogado num arranha-céus na 42nd Street, com acesso direto à estação, de onde os comboios partiam com intervalos de poucos minutos para 122 cidades dos estados norte-americanos de Nova Iorque e do Connecticut.

Ele e a mulher dirigiam uma pequena firma de advocacia, especializada em direito imobiliário, no 47.º andar do prédio. No final do dia de trabalho, na sexta-feira, 21 de fevereiro, dirigiu-se às plataformas da linha de New Haven, embarcou num comboio e viajou 30 minutos para o norte, até New Rochelle, cidade suburbana no condado de Westchester. Naquele momento, havia 34 casos confirmados de covid-19 nos Estados Unidos, todos vinculados a viagens internacionais.

No dia seguinte, foi à sinagoga, em Young Israel, em New Rochelle, como em todos os sábados. Ele e a mulher tinham quatro filhos, embora apenas dois vivessem com eles na altura – um estava na faculdade, em Manhattan, e uma filha, ainda a frequentar o ensino médio norte-americano. Apesar das exigências profissionais, ele era um bom homem de família, igualmente ansioso para estar com os filhos quanto para trabalhar num qualquer caso dos seus clientes. A casa da família ficava perto de Young Israel, nos limites do eruv, perímetro simbólico identificado por postes telefónicos, linhas de energia e outros pontos de referência. Dentro do eruv, algumas regras do sabá são relaxadas, como se toda a vizinhança fosse uma casa comunitária – um cluster (aglomerado), o ambiente ideal para a transmissão rápida e descontrolada do vírus, tal como o considera a Organização Mundial de Saúde.

O homem estava de volta à sinagoga às 11h00 do dia seguinte, para um funeral. Centenas de fiéis compareceram para homenagear um sobrevivente do Holocausto falecido no dia anterior aos 93 anos. Naquela tarde, alguns membros da comunidade voltaram a Young Israel. Enquanto as crianças brincavam, o homem e os outros adultos conversavam, comiam hors d’oeuvres e tomavam algumas bebidas. Durante os dois eventos, as autoridades de Saúde estimaram, posteriormente, que o homem entrou em contacto com 800 e a mil pessoas.

Dos primeiros sintomas ao coma induzido

“Senti uma tosse, que não era nada de mais, e pensei que fosse alergia”, acabaria por contar o homem mais tarde ao New York Law Journal. Como a tosse persistia, pensou em marcar uma consulta médica. Só no dia 26 de fevereiro, quando começou a ficar febril, que, como disse, começou “a somar dois mais dois”.

Deveria viajar para Washington DC, na semana seguinte para a conferência anual do Comité de Assuntos Públicos de Israel, onde estaria na mesma sala com membros do Congresso e com vários chefes de estado. A viagem nunca aconteceu. Em vez disso, foi levado ao hospital por um amigo, onde, dias depois, testou positivo para SARS-CoV-2. Foi uma das primeiras pessoas nos Estados Unidos da América a contrair o vírus por disseminação na comunidade.

Nos dias que se seguiram, a contagem de casos em New Rochelle começou a subir. A mulher e os dois filhos testaram positivo e o amigo que o levara ao hospital também, tal como membros da família dele. Qualquer pessoa que esteve em Young Israel no fim de semana de 22 de fevereiro foi colocada em quarentena, mas dezenas já estavam infectadas. Inclusive dois dos funcionários do bar onde havia acontecido a reunião de amigos. A faculdade do filho fechou, assim como o colégio da filha. Em 5 de março, o rabino de Young Israel anunciou que também ele havia contraído o vírus.

Nesta altura, Andrew Cuomo, governador de Nova Iorque, dava conferências de imprensa diárias sobre o surto. New Rochelle tinha “provavelmente o maior surto dos Estados Unidos”, disse. “Os números têm aumentado. Os números continuam a aumentar. Os números estão a aumentar sem previsão de quando possam diminuir.”

As autoridades estaduais montaram cerca sanitária a Young Israel com um raio de quilómetro e meio, no interior da qual escolas e locais de culto tiveram de fechar. Foram proibidas reuniões sociais. As regras eram diferentes dentro desse perímetro, mas não por muito tempo. Os residentes de New Rochelle viviam o futuro dos Estados Unidos da América: do surto à pandemia.

A condição do advogado piorou e foi colocado em coma induzido. A mulher, que tinha um caso leve, passou a publicar atualizações no Facebook. “Temos amigos maravilhosos que olharam por nós, apesar dos medos que nos cercam”, escreveu. Os comentários encheram-na de desejos de rápidas melhoras. “Uma comunidade inteira ora pela tua família, todos os dias”, escreveu um dos membro de Young Israel.

Em 11 de março, mais de 50 novos casos foram relacionados com o homem. Uma semana depois, havia 50 casos na escola da filha. Cuomo qualificou o surto como “uma das situações mais complicadas que encontrámos devido ao número de interconexões que esta família apresentou”. No final do mês, cerca de 10 mil casos foram diagnosticados no Condado de Westchester.

Depois de mais de duas semanas em coma numa unidade de cuidados intensivos, o homem acordou. A primeira coisa que fez, revelou a mulher, foi dizer-lhe, por videoconferência, que a amava. Depois perguntou se o resto da família estava bem. A imprensa tinha encontrado o seu Paciente Zero, o homem que levou a doença para a cidade para New Rochelle.

Ficou claro que as virtudes que fizeram deste homem um bom vizinho – sempre disponível para amigos e familiares em momentos de alegria ou de dor – também o tornaram altamente eficiente na propagação da covid-19. Se ele tivesse voltado da Grand Central e ficado em casa naquele fim de semana, quantas pessoas teriam escapado à doença? Removê-lo da cadeia de transmissão teria sido o equivalente à inexistência de qualquer surto.

Os supercontagiadores e a superpropagação

Os supercontagiadores da covid-19 existem desde o início da pandemia e há desde praticamente o início conhecimento desse facto. Em janeiro, um homem transmitiu o vírus a 23 pessoas durante uma viagem de autocarro na costa chinesa no sul de Xangai. Em março, um membro de um coro do estado de Washington transmitiu o vírus a 52 colegas. Em agosto, a presença de um convidado infectado num casamento no Maine acabou por levar a mais de 175 casos positivos. Em setembro, o presidente Trump organizou o evento de superpropagação mais famoso de todos: uma festa para celebrar a nomeação de Amy Coney Barrett para a Tribunal Supremo que pode ter infectado dezenas dos republicanos mais influentes em Washington, tal como funcionários e a imprensa da Casa Branca.

Esta é uma pandemia definida por clusters, pode ler-se neste extenso artigo da Wired. Alguns causam surtos mortais em lares de idosos, em prisões em fábricas. Outros sobrecarregam famílias e grupos de amigos. Embora os números variem de estudo para estudo, o SARS-CoV-2 parece seguir a regra 80/20: 80% dos casos provêm de apenas 20% dos indivíduos infectados.

De fato, a maioria das pessoas com teste positivo – um estudo de Hong Kong estima o número em 69% – não propaga a doença de forma alguma. Apesar de intetados, permanecem assintomáticos ou adoecem, recuperam ou morrem, tudo sem passar o vírus a ninguém. E depois há os pacientes como o advogado de New Rochelle, os supercontagiadores.

A superpropagação torna o vírus especialmente confuso. E isto explica por que alguns lugares tiveram grandes surtos enquanto outros foram poupados, pelo menos durante algum tempo, e por que o mesmo comportamento arriscado (um casamento, por exemplo) pode levar a dezenas de casos – ou a nenhum. Resta a certeza de que – apesar de todas as questões ainda sem resposta – de que este é o ponto fraco do vírus: eliminemos os supercontagiadores e acabaremos com a pandemia.

Vacinem-se as borboletas sociais e o vírus não chegará aos lares

É por este motivo que a comunidade científica aconselha a deixar a vacinação dos idosos para depois da ‘caça’ às borboletas sociais: os supercontagiadores. Até agora, as ferramentas para impedir os surtos têm sido contundentes. impuseram-se bloqueios nacionais e ordens de distanciamento social universal a todos, independentemente da probabilidade de transmissão da doença.

Agora que as primeiras vacinas para a covid-19 chegaram, o nosso instinto pode ser seguir a mesma abordagem, vacinar todos os que pudermos o mais rápido possível, forçando o caminho para a imunidade coletiva – o momento em que o número de pessoas suscetíveis de serem infetadas deixa de ser significativo para o vírus saltar de hóspede em hóspede.

O fornecimento da vacina será limitado – até simbólico – até meados de 2021 ou até mais tarde. Será necessária uma estratégia mais precisa e personalizada. Por isso, quem deve receber primeiro a vacina – além de, obviamente, os profissionais de Saúde e das forças de Segurança – idosos trancados em lares, meses a fio sem o abraço de familiares, ou os tais 20% da regra 80/20, os supercontagiadores, as borboletas sociais?

Quem são os supercontagiadores?

A resposta é simples para Alessandro Vespignani, epidemiologista computacional e um dos consultores do governo dos Estados Unidos da América sobre a resposta à covid-19. “Supercontagiar é uma palavra que muitas pessoas associam à ideia de que, por alguma estranha razão biológica, alguém está a espalhar mais a doença”, diz. “Mas não é o que se passa neste caso”, diagnostica. O caso é, como pode facilmente adivinhar-se, “simplesmente o número de pessoas com quem cada um contacta, e quantos mais contactos mais disseminação”. Ou seja, se uma pessoa infecciosa está confinada, não importa a quantidade de vírus de que é portadora, porque não os transmitirá.

Para acabar com a transmissão maciça da covid-19, fica mais claro que é necessário abrir ‘fogo’ aos supercontagiadores e não aos confinados, como os que estão em lares, em prisões e noutros ambientes ‘herméticos’. É mais lógico vacinar primeiro as borboletas sociais. Elas são o alvo ideal da nova arma da pandemia: a vacina. Elas são as pessoas com muitos contactos em diferentes ambientes, elas são as que têm famílias numerosas, multigeracionais, elas são as que têm empregos que obrigam a conviver com muitos estranhos, elas são as que têm uma vida social agitada.

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