Vasco viu cadáver da mãe cortado ao meio pelas obras de novo aeroporto em Moçambique
Vasco Francisco, 47 anos, assistiu a exumação e mutilação do cadáver da sua mãe na transferência de campas familiares num espaço que hoje acolhe as obras de um novo aeroporto na província de Gaza, sul de Moçambique.
Vasco Francisco, 47 anos, assistiu a exumação e mutilação do cadáver da sua mãe na transferência de campas familiares num espaço que hoje acolhe as obras de um novo aeroporto na província de Gaza, sul de Moçambique.
“Eles partiram [o corpo ao meio] e o dobraram para conseguir metê-lo nos seus caixões”, conta à Lusa Vasco Francisco, visivelmente abalado, sentado por debaixo de uma sombra a poucos metros do espaço que antes foi o cemitério da sua família e hoje é um aeroporto no distrito de Chongane, no interior da província de Gaza.
A data exata da morte da sua mãe não está na sua memória, mas lembra-se vagamente do ano – 2018, ano em que foi lançado o projeto de construção do aeroporto que abrange uma área de cerca de 140 hectares em Chongane, num espaço que, além de cemitérios familiares, acolhia campos agrários de comunidades que vivem nos arredores do projeto.
Vasco conta à Lusa que a comunidade recebeu o projeto de construção do aeroporto, o primeiro naquela província, com agrado na primeira fase, mas a forma como o processo de exumação de corpos foi conduzido chocou a população, numa terra onde os “túmulos são sagrados”.
A comissão criada localmente pelo Governo, que integrava uma médica legista e uma funcionária da Direção Provincial de Assistência Social de Gaza, exumou e mutilou vários corpos com recurso a catanas, serrotes e pás, de forma que pudessem caber nos pequenos caixões adquiridos pelas autoridades, alegando que não havia fundos para compra de novas urnas, segundo as comunidades.
No caso da mãe de Vasco, o corpo dela foi cortado ao meio, mas mesmo assim não coube no caixão, que foi transferido para o novo cemitério aberto, na presença da família da malograda.
“Levaram uma capulana amararam a tampa do caixão e foram meter lá no novo cemitério. Eu chorei”, lamenta o agricultor, acrescentando que a “comunidade não pôde fazer nada porque eles disseram que são ordens do Governo”.
Hoje, o local ontem “sagrado” para Vasco, está protegido por cercas e muros, onde panfletos publicitários de empresas chinesas que constroem a infraestrutura e a bandeira daquele país asiático destacam-se no meio da poeira das secas terras de Gaza.
Olinda Romão, 46 anos, também lembra do dia em que a mãe de Vasco foi exumada e, depois do episódio “chocante” que assistiu, não aceitou que os seus familiares que também estavam naquele cemitério fossem exumados, tendo chamado para si a responsabilidade de improvisar um caixão com base em caniço (uma planta usada para construção de casas em zonas rurais de Moçambique).
“Vimos que eles partiram o corpo da mãe do tio Vasco, então não aceitamos aqueles caixões e tivemos de fazer os nossos, através de caniço”, declarou Olinda Romão.
Além da “exumação indigna”, segundo Olinda Romão, há casos de pessoas que não conseguiram localizar as sepulturas dos seus familiares enterrados no local, o que leva a comunidades a acreditarem que ainda há corpos por de baixo da pista.
Para o ativista social em Gaza Carlos Mula, o processo de exumação pode ser descrito como uma “agressão grosseira” à moral das famílias, acrescentando que no corpo jurídico moçambicano a vandalização de campas é crime.
“O Governo devia ter contratado uma empresa especializada na exumação de corpos e não deixar que seja a comunidade, porque a comunidade não tem a perícia”, frisou o ativista, acrescentando que, mesmo no novo cemitério, a forma como os corpos foram enterrados atenta contra os hábitos e costumes das comunidades daquela província.
“Na nossa cultura, ao enterrar alguém, o corpo desta pessoa não deve estar virado para o nascente ou para o pôr do sol. Não só, a hora de fazer uma cerimónia fúnebre não pode ser de noite, como foi feito neste caso, há um horário que deve ser obedecido com todo rigor “, acrescentou o ativista, ligado também ao Centro Terra Viva, uma organização não governamental que despoletou o caso.
Além da exumação polémica, as cerca de 400 famílias que tinham campos agrícolas e cemitérios familiares no local em que está a ser construído o aeroporto queixam-se de que há compensações em falta.
Celeste Mondlane é uma das várias agricultoras que perdeu o seu campo e na última vez que reclamou em nome das famílias afetadas junto das autoridades a resposta que recebeu foi: “o bolso do governo está furado”.
“Nós, quando vamos reclamar ao nosso Governo, as autoridades dizem que o bolso do Governo está furado. Mas as obras do Aeroporto já terminaram”, lamenta a camponesa.
A Lusa em Gaza tentou, sem sucessos, contactar o diretor dos Serviços Provinciais de Infraestruturas, Alberto Matussse, que tem estado a coordenar o processo que envolve as famílias afetadas pelo projeto.
O projeto de construção do aeroporto foi descrito, em 2018, pelo chefe de Estado moçambicano, Filipe Nyusi, como uma infraestrutura que vai “promover o desenvolvimento da economia local e regional”, colocando a província de Gaza na “rede de transporte aéreo”.
O aeroporto de Chongoene, com uma pista de aterragem de 1.800 metros, está orçado em 75 milhões de dólares, disponibilizado pelo banco chinês Exim Bank, segundo dados avançados pela Presidência em 2018.
Para quem vem de fora, a beleza e a dimensão da moderna infraestrutura levantada com financiamento chinês é inquestionável, mas maior é a dor de Vasco, que terá de lembrar pelos próximos anos do corpo da sua mãe cortado ao meio, no roncar dos motores de cada avião que aterrar em Chonguene.
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